terça-feira, 16 de dezembro de 2008

[Conto] Seduções!



“Pleased to meet you, hope you guess my name,

But what’s puzzling you is the nature of my game”

The Rolling Stones – Simpathy of the Devil (1968)



Muito prazer! Eu bem sei que não é uma visita usual, a minha; prefiro observar à distância, e pela fama que recebo talvez seja o último indivíduo que você gostaria de ver pela frente, mas lhe asseguro, minha bela morena: não estou aqui para impor nada – só peço que me receba com o mínimo de cortesia, e permita-me apresentar-me – caso o que tenho a lhe dizer não cause nenhuma simpatia, irei embora com a mesma imprevisibilidade e distinção com que surgi, como um perfeito cavalheiro. Sou um homem refinado, e não estou aqui para desperdiçar nosso tempo com retóricas sediciosas, por isso não perca seu tempo confrontando-me: depois que eu me for, você terá todo o tempo do mundo para decidir o que fazer. Sem jogos, sem clichês, sem falsos interesses. Pouco me importa o lugar onde você estuda, se já é formada, onde você trabalha, quanto ganha, ou o seu signo no zodíaco – nada disso expressa o ponto aonde quero chegar. Também não estou preocupado com o fato de você gostar de baladas, esportes, ou de novelas, eu moro dentro dos teus momentos, onde você estiver, dentro de cada sorriso dissimulado, de cada olhar hesitante, de cada pensamento abafado no quarto escuro! A existência é um grande processo de interpretação, portanto permita-se interpretar-se a si mesma, e quando tiver realmente certeza de que ainda existe, talvez compreenda o que estou tentando lhe dizer.

Pela curiosidade de seus olhos, insta-me salientar, minha cara: prego a transformação, a audácia; a base do que lhe proponho se sustenta no fato de ser o caos a única saída viável, a partir do momento que o cosmo torna-se demasiadamente inerte e invariável; sou o tempero, o flerte, e a ousadia; sou o olhar através das cortinas do apartamento, famintos pelo turbilhão de acontecimentos que se engalfinham sob o parapeito; sou a curiosidade, o desapego e as alucinações; sou a estrada, o caminho, e o regente do destino, pois meu hálito faz-lhe enxergar o futuro e não se preocupar com ele; o futuro só existe a partir do momento que se torna presente, e você, no fundo, sabe muito bem disso; perto do que lhe proponho, os sofrimentos do mundo se dissipam no ar, como que incapazes de atingi-la; sou aquele que é temido por todos os chefes de Estado, não só por instigar a revolução, como também por buscá-los, absorto, à beira de cada guilhotina, forca ou parede de fuzilamento. Eu sou a bala que sai, o pó que entra, o filho que não volta; sou as faces da mesma moeda: o poder do dinheiro e a vida dos seus filhos eternamente sob escolta armada, entre a casa e a escola.

Mas não se engane, minha bela e sensual morena, cumpro meu destino aparentemente injurioso, tal qual Judas cumpriu sua missão ao entregar Jesus, para que se transformasse em Cristo. Sou aquele que foi encarregado de te convencer a experimentar a Criação Divina por seus próprios olhos, boca, narinas e orelha; com todos os nervos, pelos e sentidos. Os porcos que tentam controlar o comportamento humano através do medo de experimentar são os mesmos que temem meus desígnios sob os escudos da mais falsa fé em um Deus em que ninguém mais acredita, pois as regras do mundo mudam a cada segundo. Fui encarregado como o portador da luz, para conduzi-la entre os indivíduos, e é ela quem exorcizará as sombras que cercam cada templo, cada capela, cada cruz. Não há mistérios, nem jogos de duplo sentido, minha bela – basta que aceite a natureza do meu jogo: as regras já foram previamente definidas por Ele, para que eu livrasse os indivíduos do grande mal que assola a humanidade: o domínio infame e calculista do homem sobre o próprio homem!

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

[Conto] Vazio.

Vazio. Era assim que o espaço-tempo ao redor de Cristina ungiam o apartamento de quarto e sala na esquina mais movimentada da cidade com um sentimento melancólico e obscuro, de origem desconhecida. No rádio, um solo de trompete se contorcia denso entre a sala e a cozinha, agonizando solitário ante um tímido acompanhamento de piano minimalista. Olhou para a conjunção descontínua entre carros e sinais de trânsito efervescendo pelas paredes externas do prédio, embebidos pela chuva e abafados pelas janelas fechadas, enquanto buscava dentro de si um pouco de disposição para preparar o café da tarde. Os guarda-chuvas se encarregavam de um movimento lúdico e inconstante, cobrindo as calçadas com seu luto inanimado. Na cabeceira da cama ainda havia mais três comprimidos de Diazepam, os últimos, guardados como tesouro para enfrentar mais uma tenebrosa noite de domingo, e esperar incógnita a manhã de segunda-feira. Costumava dizer que a culpa de sua solidão era a obesidade e a mecha de cabelo branco que lhe tomava a têmpora, impondo-lhe um ar dracúleo. Cristina era dessas mulheres apaixonadas que nunca estão amando a ninguém, muito mais por conta do pessimismo que lhe é inato do que pela falta de atributos físicos; o negativismo apaga qualquer possibilidade de beleza palpável num corpo pálido, inerte e esquecido. Pediu licença médica da repartição para tratar de uma depressão aguda, e desde então só saia de casa para comprar comida, religiosamente no mesmo horário, todos os dias; mas desta vez, comprou um litro de vodka no lugar do macarrão. Um copo fundo, um cigarro, Bitches Brew passeando por diversas escalas, e o segundo copo fundo fez com que Cristina esquecesse o gás aberto, enquanto procurava algo interessante na televisão num dia chuvoso de domingo – não sem antes vedar a porta com uma toalha de banho molhada.

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

[Conto] Uma Lua?

“Em meio um cristal de ecos
O poeta vai pela rua
Seus olhos verdes de éter
Abrem cavernas na lua.
A lua volta de flanco
Eriçada de luxúria
O poeta, aloucado e branco
Palpa as nádegas da lua. (...)”

Trecho de “O Poeta e a Lua”, de Vinícius de Moraes. in. Antologia Poética.


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Uma Lua?

Por um feliz acaso lingüístico, ou por pura malícia dos ancestrais, Lua é um substantivo simples, do gênero feminino. Um substantivo simples, para nos lembrar que a vida não é tão complicada como imaginamos, ou tão dura como tentamos torná-la. Uma consoante, duas vogais em ditongo decrescente, simplesmente Lua. Suave e mística, com seu olhar de morena velando a noite, inspirando poetas e vagabundos, dissolvendo risadas soltas no ar por nossas madrugadas tropicais, enquanto o sereno cai tranqüilo e contundente como agulhas em noites frias, ou então refrescante como a brisa marítima, quem sabe?!


Feminina pelos encantos que exerce em suas quatro faces: Nova, Crescente, Minguante, Cheia! Feminina, pois só uma bela mulher poderia exercer tais encantos sobre a humanidade. Feminina, pois só sendo feminina para conseguir tirar a atenção do homem sobre seu incólume mundo egoísta, fazê-lo olhar para o céu, e comentar: “Nossa, como a Lua está linda hoje?!”


Enfim, feminina, pois mesmo depois do último copo, ou falecido o último dos poetas, o último dos insones, o último dos vagabundos, e mesmo depois de desiludido o último dos sonhadores, lá estará ela, triunfante, redonda e branca, reinando soberana sobre a madrugada.

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

[Conto] Apenas mais um verão escaldante.

Mais um dezembro escaldante como outro qualquer; a rádio comunitária gritando um funk estridente, o som metálico das peças do fuzil se encaixando e a gota de suor escorrendo pela minha testa fazem parecer que o tempo parou por alguns instantes, para dar a todos mais alguns segundos de vida. Montei e desmontei a Kalashnikov três vezes, enquanto o exército se prepara para subir – dá pra sentir daqui de cima o cheiro do medo. As pipas já não estão mais no céu, as pessoas já trancaram suas casas. A polícia alegou não ter condições de subir o morro, e o exército brasileiro entrou na jogada como última solução para o caos urbano. Irônico, né?! – mais fácil convencer um moleque de dezoito anos a cumprir o dever, do que um pai de família; mas não é disso que eu quero falar: quando as armas dispararem os primeiros tiros, será apenas o velho instinto de sobrevivência primata cuspindo projéteis a setecentos metros por segundo na direção do inimigo; sem sociologia, Estado, ou religião para intervir. Depois de morto deve ser mais fácil olhar para a própria vida e encontrar nossos erros, mas não estou aqui para chorar minhas misérias, nem para compreender o que o destino me aprontou – sobrevivo no tráfico desde os treze anos, sem nenhum ferimento de combate, e rezo todos os dias para continuar vivo, ou morrer rápido, só isso; e talvez por isso mesmo incomode tanto o secretário de segurança pública: atualmente, sou o cara que está a mais tempo no comando de uma boca de fumo em todo o estado do Rio de Janeiro – e por isso mesmo chegou a minha vez de pagar o preço da fama, os jornais precisam dar alguma satisfação para o pão e circo nosso de cada dia, e vou fazer o possível para que minha vez não seja hoje. Simplesmente fingem não saber que matando um cara como eu, surgirão outros vinte querendo ocupar a vaga, mas prefiro não dizer o que penso sobre isso tudo – o que importa agora é sobreviver, e não contemporizar com o inimigo. Eles já estão posicionados, faltam alguns segundos incólumes para a primeira armar disparar, e alguns minutos insanos entre o primeiro tiro e o caos. Coloquei os fones de ouvido, a trilha sonora do Pulp Fiction me inspira – seria bom ser bandido como o John Travolta, e no próximo filme interpretar um cara comum, mas aqui é a Babilônia, não Hollywood. As carreiras do pó branco me deixam concentrado em continuar vivo por mais um dia, enquanto Miserlou fica repetindo no MP3 catarticamente a todo volume, e minhas pupilas dilatam. Faço o sinal da cruz, pedindo para que o sangue espalhado pelo chão não seja o meu, beijo o retrato do meu filho; minhas guias me protegem, e seiscentos tiros por minuto abrem as portas entre o céu e o inferno, enquanto o helicóptero da Globo registra tudo à distância segura. É apenas mais um dezembro escaldante, que em algumas horas você verá na TV.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

[Conto] A estranha cigana polivalente.

Algumas histórias só se permitem acontecer nas entranhas mais íntimas da cidade, à penumbra e em segredo, protegida dos olhos desatentos e apedrejadores do mundo. Cristina era uma mulher possessiva; seu ciúme sobrevivia ao fim das relações. Naquela época a vida e o tempo pareciam correr homogêneos, e a idade ainda não anunciava a urgência de viver cada dia como se fosse desesperadamente o último. A estranha cigana tinha somente alguns dentes podres figurando com o de ouro, solitário no canto direito da boca, mas era polivalente; jogava tarô, búzios, era astróloga, vidente, lia mãos, runas, cabala judaica e borra de café – Cristina a elegeu por parecer a mais completa do anúncio de jornal; pagou adiantado, e fez tudo conforme lhe foi instruído naquela saleta mal iluminada fedendo a velas aromáticas vagabundas. No primeiro alguidar, velas vermelhas, ovos, farofa com dendê, mel, açúcar, maçãs e uma garrafa de champanhe; no segundo, velas pretas com fitas vermelhas de cetim, farofa com sal, pimenta, pipoca, frango assado e uma garrafa de cachaça, tudo deixado numa encruzilhada próxima ao cemitério local durante a madrugada. Ira – dos pecados, o mais pungente; aquele caprichosamente praticado por Deus, esporadicamente, para pôr as coisas em seu devido lugar! O ciúme é corrosivo como o sal fustigando o manto dos gastrópodes, roubando-lhes a água, sugando-lhes a vida, até secarem por completo. Segundo a velha cigana, um dos despachos era para trazer Claudionor de volta; o outro, era para eliminar a amante do mapa, impiedosamente, abrindo-lhe assim todos os caminhos para a felicidade plena. A ira de Cristina estava cega na salmoura do ciúme, e numa dor entorpecida de mulher abandonada – ele será seu novamente, custe o que custar.

sábado, 18 de outubro de 2008

[Conto] Prosa descontínua do substantivo feminino.

A ambulância, a maternidade, a luz. A enfermeira, a palmada, a tesoura. A mãe, a infância, as palavras. A bicicleta, a pipa, a amizade. A adolescência, a primeira vez, a paixão. A filosofia, a música, a ilusão. A carteira de motorista, a faculdade, as festas. As noites, as bebidas, as mulheres. A moto, a praia, a euforia. A viagem, a paisagem, a namorada. A paixão, a fidelidade, a tentação. A mulher, a poesia, a prestação. A pia, a geladeira, a máquina de lavar. A sogra, a empregada, a cunhada. A gravidez, a maternidade, a luz. A filha, a crise financeira, a discussão de relacionamento. A outra, a separação, a pensão alimentícia. A depressão, a escolha, a reconstrução. A noite, a liberdade, a namorada. A mudança, a adaptação, a tranquilidade. A união estável, a segunda filha, a nova fase. A carreira, a estabilidade, a realização. A adolescência, a insônia, a preocupação. A faculdade da filha, a aposentadoria, a velhice. A neta, a teogonia, a televisão. A transcendência, a entrega, a morte.

sábado, 11 de outubro de 2008

[Conto] Interseções!

Depois de três anos, Sandra Mara acordou. Abriu os olhos lentamente, ainda não acostumados à luz do dia, identificou o quarto à sua volta, mas não o reconheceu - era seu quarto, aquele que arrumava todos os dias, assim como o resto da casa, mas tudo lhe era estranho. Olhou as roupas do marido espalhadas sobre a cama, a toalha pendurada na porta do banheiro, e percebeu que, por algum motivo, ali não era mais o seu lugar. Aversão pura e simples de fêmea insatisfeita; sem brigas, sem traições, sem mágoas - apenas o desejo incontido de oferecer seu ventre e sua plenitude a outro homem, que ainda não conhecia - sim, ainda havia tempo! Seu marido jamais compreenderia. Perguntaria se tem outro, se estava magoada com algo, se queria viajar para a praia, se estava tudo bem no emprego - mas nunca seria capaz de assimilar que aquele amor acabou, através de um sentimento singelo e sem culpa de 'não-amor': talvez um amor de amigo; e para ele, em seu modo pragmático de enxergar, nada mais obscuro do que o simples deixar de sentir. Ou tem amor, ou desprezo; ou é paixão, ou ódio; ou tesão, ou aversão. Enquanto para ele o amor era algo eterno e inabalável, para ela havia acabado de se mostrar efêmero e aleatório, naquela manhã ensolarada de um dia qualquer - a intensão de parecer viver um conto de fadas se desfez, e ela percebeu que ninguém é feliz para sempre. Decidiu contar-lhe tudo no jantar de sexta-feira. Ele chorou, declarou seu amor e foi pateticamente estúpido, alternando entre as três reações quase que dentro do mesmo espaço de tempo. Fez várias perguntas, não acreditou em nenhuma das respostas; afirmou que sem ela não poderia viver, que não saberia como viver sozinho. Disse, como quem se rende ao inimigo, que o divórcio é pior que a morte. Mas Sandra Mara era o vazio agoniante e frio de uma noite no deserto.

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

[Conto] O beijo da Esfinge!

“...ya no la quiero, és cierto, pero talvez la quiera...”
Pablo Neruda, “Los Veinte poemas de amor, y uma canción desesperada”.


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Com toda certeza não a amo nem estou apaixonado, não tente rotular o que não você conhece! Palavras são signos que nem sempre expressam plenamente um significado, mas se fosse para tentar tecer uma comunicação com um mundo externo ao meu, escolheria ‘desejo’. Não aquele meramente carnal – mais do que comê-la, preciso devorá-la e digeri-la lentamente – mas seus beijos são como um balão, começando do ponto mais alto seu declínio lento e frio. Sob os lençóis, a Esfinge repousa serena, como quem monta guarda em frente a um portal acessível para poucos. Ela não quer promessas, não precisa delas; tem fome de respostas, mas não pode pronunciar as perguntas. Em seu labirinto particular, a última vítima procura desesperadamente pela saída, enquanto seus olhos passeiam suaves pelo mundo, e eu observo à distância, tentando decifrar os enigmas da entrada de seu templo. O sol brilhando sobre seus flancos me ofusca a visão, e eu desvio os olhos para baixo. Busco seus pontos fracos com os passos silenciosos e precisos de um caçador de leoas, mas é inútil: a cada investida mais incisiva, o chão sob meus pés se desfaz em abismos intransponíveis. Ofegante, enxugo o suor em minha testa e observo. A enigmática mulher com corpo de leoa desvia os olhos para mim por uns instantes, e sorri intocável; tenho acesso a seu corpo, mas ela está guardando a entrada de um mundo inacessível para mim. Segundos antes de perder os sentidos, ouço um sussurro quase inaudível: “Decifra-me, ou te devoro!”.

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

[Conto] Fragmentos

Clotilde usou o FGTS que recebeu com a demissão para reforçar sua escassa dentição. O seguro desemprego ainda lhe renderia mais cinco meses sem trabalho e ela resolveu experimentar coisas novas. Caiu de pára-quedas no underground, aprendeu a beber, a fumar, mudou o estilo da vestimenta, e se enturmou com um pessoal meio metido a intelectual, mas que sempre ria de suas piadas sexualmente caricatas com certa incredulidade da situação surreal de ver aquela mulher tão parecida com o Zacarias falando palavrões. Passou a gostar de Rockabilly, deixou as meninas cortarem seu cabelo, e começou a sair todos os dias. Sexo, drogas e rock’n roll, com muito mais rock’n roll do que sexo e drogas, e tudo corria tranqüilo, até que ela voluntariosamente se ofereceu para cozinhar para a turma – ela entrava com os conhecimentos culinários, eles com os ingredientes. Mais de vinte pessoas foram experimentar o tal risoto ao funghi, panelão no fogo, todos comendo com muita satisfação. Clotilde acordou ao meio-dia numa praia que não conhecia, e até deu uma risada maliciosa, ao perceber sinais de uma possível noite de sexo da qual não se lembrava.

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

[Conto] A Flor do Lodo.

Madalena subiu o vestido, abotoou no ombro, vestiu a calcinha, pegou todo o dinheiro, o pacote com o pó branco, e saiu apressada, aproveitando que o homem da noite anterior ainda dormia, num típico apartamento com cheiro de mofo no centro da cidade, às nove da manhã de um dezembro escaldante, enquanto os ruídos daquela quarta-feira soavam uníssonos; o estômago da cidade começava a roncar sua fome capitalista. Não lembrava seu nome, nem queria saber. Desceu as escadas encarando a agressividade quase evangélica da luz do dia, desceu quatro ruas, entrou no Mc Donald’s, comprou uma Coca, pediu dois canudinhos, e se trancou no banheiro por uns minutos, para se recompor. O divórcio lhe foi cruel; a vida lhe cobrou com a inflexibilidade de um vigário. Traição não se perdoa; ela não foi perdoada, nem se perdoou. Trinta e cinco anos, sem filhos, e a sensação da juventude esvaída – ou pior, despedaçada em oito anos de trepadas burocráticas, daquelas em que nem se tira a roupa por completo.

terça-feira, 16 de setembro de 2008

[Conto] – A Rainha do Funk

“Não compara com a de fé
Tu é lanchinho da madrugada
Mas se mexer com a fiel
Tu vai se ligar na parada”

‘Lanchinho da Madrugada’ – Funk carioca



Conheci Adália Regina nos meus tempos de Olaria, quando ela era rainha do baile funk da Vila Cruzeiro, inabalável e indolente sorriso no rosto, e uma sexualidade pulsante nos quadris. Pra esculpir aquele corpo todo, apenas um exercício: micro-saia sem calcinha nos bailes de terças, quintas e sextas, além das subidas e descidas diárias num morro da região. Delícia de mulata! Hoje sou um sortudo pai de família, bem sucedido em minha profissão, e morador da Tijuca – nada que me lembre aquele passado distante, mas confesso que ontem quase engasguei com meu próprio cuspe quando encontrei a Adália Regina, depois de dez anos, na reunião de condomínio do meu prédio. Juro que não é preconceito nem machismo, mas por mais aberta que seja a mente da pessoa, ela ficou com o estigma de um passado meio nebuloso. Nada contra o passado dela, nem nada disso, o importante é realizar todos os desejos e viver a vida intensamente, mas, pô, o vizinho do terceiro andar foi casar justo com a Adália Regina, a rainha do boquete da Vila Cruzeiro?! Tá, retiro o que disse...ainda não experimentei para saber se o título é justo, mas ainda assim, passado o susto dei graças a Deus por ser só um vizinho, e não um amigo meu! Ela já não é mais nem de perto a exuberância dos vinte e um, mas ainda é titular de um belo fêmur. O marido subiu antes da reunião de condomínio começar e eu fiquei ali, contemplando descaradamente aquele corpão de chocolate, imaginando o suculento sabor salgado de suas entranhas, e muito satisfeito por minha mulher não ter paciência com reuniões de condomínio. Adália Regina sentou-se de frente para mim, no círculo que havíamos formado no saguão do salão de festas, e cruzou as pernas, dando aos presentes uma aula detalhada de anatomia muscular da coxa feminina. Vestia uma saia amarela que lhe cobria apenas o principal. Eu também fui obrigado a cruzar as pernas, pelas sensações que aquela mulata me causava. O circo estava armado! É a única coisa que eu me lembro da reunião – tive que disfarçar um pouco, olhando em outras direções e balançando a cabeça afirmativamente, pois os demais conselheiros chegaram a estranhar eu não ter falado absolutamente nada durante a reunião, justo eu, um dos moradores mais participativos do prédio! De todo modo, fiquei marcando a saída daquela deusa no final da reunião de condomínio, providenciando o caminho para ficar a sós com ela no elevador – tive até que dizer para a Dona Celestina, uma idosa do primeiro andar que tem Alzheimer, que ela havia esquecido o casaco nas costas da cadeira. Enfim, a porta do elevador fechou e eu investi sensualmente no ouvido da beldade:

- Adália Regina...

Ela me olhou com um desdém que lhe era peculiar, desde os tempos de Olaria.

- Eu conheço o senhor de algum lugar?

- Clemente, lá de Olaria...

- Desculpe, não lembro!

- Eu adoraria fazê-la lembrar...

- Babaca!

Doeu! Ela saiu do elevador, no terceiro andar, e a visão da porta se fechando e ocultando lentamente aquelas pernas morenas cobertas apenas por um pedaço de pano amarelo, sob a trilha sonora de seus tamancos ecoando no assoalho doeram como punhaladas no meu ego! Voltei para meu apartamento, torcendo para que ela não levasse a história adiante, afinal causaria um grande mal-estar com minha esposa, e o marido dela era um armário. Deusdete, minha senhora, me esperava com a janta pronta, e algumas perguntas de praxe sobre a reunião de condomínio – ‘a babaquice de sempre’, limitei-me a responder, lacônico. Jantamos, e Deusdete foi dormir – eu, pela euforia que me causou Adália Regina, fiquei rolando na cama até que ouvi, lá por uma da madrugada, um barulho de portas sendo chutadas, gritaria, e pensei no pior: Adália Regina tinha dado com a língua nos dentes, e a confusão estava armada!

Corri para o banheiro e tranquei a porta, sentindo um suor gelado me brotando pela testa. Pela barulheira das portas, tive a certeza de que se tratavam de várias pessoas subindo as escadas com a morte nos olhos. Olhei minha cara amarela no espelho do banheiro, já ofegante, pressentindo o que poderia acontecer – minhas pernas estavam tremendo. Me certifiquei que a porta estava trancada, sentei-me no vaso, pus as mãos na cabeça e fiquei ali, estático, esperando o momento em que o marido de Adália Regina entraria com seus amigos violentos, e bateriam em mim até a morte, covardemente encolhido num canto do banheiro do meu próprio apartamento! Podia imaginar o barulho de meus ossos sendo quebrados impiedosamente, o sangue me escorrendo pelas gengivas nuas, meus dentes ensanguentados no chão. Imaginei Deusdete limpando as manchas do meu sangue nos azulejos, pensei na sua decepção ao tentar entender o motivo daquela violência toda, no luto, e nas dificuldades que passaria para se sustentar depois da minha morte. Senti-me mal, por todo mal que havia feito a Deusdete, mesmo pelos que ela não soube. A gritaria continuou por um tempo que não sei dizer o quanto durou, até que, enquanto rezava o Credo, ouvi três disparos, um silêncio, e o choro de Adália Regina reverberando mudo e agudo pelo corredor. Meu Deus, será que eu causei tudo isso, com uma mera cantada de elevador? Se ele foi capaz de matá-la ali, friamente, no meio do corredor, eu certamente não passaria daquela noite! Não daria esse gosto a eles, Deusdete não precisaria esfregar as manchas do meu sangue seco grudadas no azulejo, e nem chegaria a compreender aquela história toda: decidi me jogar pela janela do banheiro e morrer com um pouco mais de dignidade! Abri a janela o máximo que pude, tomei coragem, e quando me debrucei para reconhecer o terreno de minha queda, vi logo abaixo três viaturas da polícia paradas, com o giroflex ligado. Ainda havia esperança, caso a polícia agisse rápido! Rezei mais um Credo, ainda olhando pela janela, pronto para me jogar caso a porta fosse arrombada, até que vi os policiais saindo do prédio carregando meu vizinho baleado, seguido por Adália Regina maravilhosamente algemada, com uma expressão abatida, mas vestindo um pijama de cetim dourado que ressaltava ainda mais suas formas de ex-rainha do funk do baile da Vila Cruzeiro. Senti meu corpo se esquentando novamente, e ali, olhando pela janela do meu banheiro trancado, rendi minha última e solitária homenagem a Adália Regina, enquanto a via pela última vez antes da porta do camburão se fechar.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

[Crônica] – O Babaca!

Ninguém está isento: todo mundo conhece um babaca, tem um na família, ou talvez algum dia até tenha sido um, em alguma oportunidade! Não é difícil encontrá-los por aí, aleatoriamente, pois eles costumam ter grande destaque no trânsito, no trabalho, na vizinhança, nas praias, cinemas, e em lugares de uso coletivo em geral – não precisa nem procurar: até mesmo quando você está em casa, dormindo, é capaz de algum te ligar, num sábado, às oito da manhã. São aqueles que costumam comparecer a todas as reuniões de condomínio – ou você acha que o condomínio do seu prédio está tão caro por que outro motivo? Reformas inúteis no salão de festas, aposto! Isso que não vou nem entrar no mérito das cartas aos condôminos, afixadas no espelho do elevador, com seu bizarro linguajar pseudo-erudito! Pessoas normais não conseguem tolerar a quantidade de babaquice existente em uma reunião de condomínio – não mesmo – freqüentar a todas é um martírio!

Mais do que um mero incômodo, eles são possivelmente o grande mal da humanidade: invariavelmente, sempre o babaca é o primeiro a incentivar uma guerra ou causar uma briga no trânsito; alguns adoram soltar balões; costumam deixar lixo por onde passam; a ouvir música ruim a toda altura; é aquele que manda mensagens bonitinhas em Powerpoint para o seu e-mail toda manhã; e também aquele cara que gasta milhares de litros de água por final de semana, lavando o carro e a calçada toda manhã de sábado; o babaca é aquele que, apesar de todo seu otimismo, vai ficar lhe dizendo o tempo todo que você está na merda! Além do mais, os babacas são invariavelmente preconceituosos – pode notar...todos têm sua parcela de culpa pela degradação das relações humanas, grande ou pequena, mas tem. Babacas falam o que querem, param o carro em fila dupla, arrancam com o carro em cima do pedestre, e cagoetam qualquer atraso dos colegas pro chefe – aliás, há uma infinidade de modalidades de babaca: tem o babaca quieto (aquele que consegue irritar mesmo quando está calado), o autoritário (também conhecido como ‘senhor da verdade’), o invejoso (aquele típico colega que não sabe fazer um ‘O’ com o copo, mas acha injusto que os outros tenham qualquer tipo de vantagem financeira), o eloqüente (aquele que fala que nem uma matraca, sem ninguém querer ouvi-lo), o musical (escuta Banda Calipso em volume audível por terceiros), o papagaio (aquele que visivelmente fala mais do que come), e tantos outros. Tem babaca pra todo (des)gosto!

Na tentativa de uma pretensiosa – e quase babaca – ‘definição técnica’, diria que o babaca é aquele indivíduo que simplesmente ignora regras básicas do convívio humano, por estar tão concentrado em um inabalável mundo interno, que as outras pessoas são vistas somente como um obstáculo, e não uma possível fonte de conhecimentos e troca de experiências – ele simplesmente age, deliberadamente, sem pensar, sem refletir, sem se importar! A frase preferida de todo babaca é um irônico “Foda-se!” – não que seja de uso exclusivo deles, mas estatisticamente são eles que mais vezes a repetem, com toda certeza! Um babaca só deixa de ser babaca quando percebe que não são só os outros que são babacas. E é por isso que eu rezo diariamente: Senhor, sei que as doenças são naturais; entendo que a morte é um estágio da existência; que nem todo mundo possa ser rico ao mesmo tempo, e que a fome e a violência estão aí para que aprendamos a exercitar nossa compaixão; compreendo que algumas pessoas nasçam mentalmente debilitadas; aceito resignado os desastres naturais dizimando milhares de pessoas ao mesmo tempo; não dou dinheiro a profetas que usam seu santo nome em vão; e tento ser um cidadão respeitável, dentro das minhas limitações – Senhor, compreendo que os desígnios divinos sejam além de nossa compreensão, mas pelo amor de Deus: LIVRAI-NOS DA BABAQUICE!!!

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

[Conto] A volta da Úrsula!

Ela voltou mais uma vez aterrorizando minhas meias verdades com seus trejeitos fatais, sem aviso, e com a autoridade que só ela tem sobre mim, me revirando do avesso e me deixando de joelhos, rendido em plena madrugada. Ainda não sei explicar como ela consegue – um pouco de química, física e uma pitada de fortes sentimentos. Sem eu perguntar ou mesmo permitir, ela questiona meus anseios, pondo em cheque minhas noites, minhas bebidas, e até mesmo o que eu ando comendo por aí. Diz-me que preciso de disciplina. Quando ela chega assim, sem avisar, sinto um pouco de mim se esvaindo por minha boca, sem que eu possa resistir; mais uma vez o aviso geral que parei de beber é estampado na minha testa, para os amigos não ficarem me tentando com aquele papo de ‘só um golinho ela nem vai perceber’ – não adianta: ela percebe, e sairá mais uma vez me humilhando madrugada afora! Quando chego dizendo que preciso dar um tempo nas noites, todos já sabem que ela voltou mais uma vez, me jogando na cara que eu tenho que criar juízo, ser mais adulto, que preciso ser mais centrado, que preciso tomar jeito – embora eu não saiba exatamente o que isso significa (ou realmente se significa alguma coisa idêntica para pessoas diferentes), abaixo a cabeça e tento absorver a lição. Ela não está interessada em discutir sobre fenomenologia, não adianta tentar amenizar seus conceitos. Ela nunca cede! Não adianta resistir: enquanto eu lutar contra suas vontades ela continuará me atormentando, me prendendo, até que eu ceda e me comporte como ela julga correto. Mais uma vez ela está inserida nos meus dias, e, no fim, só me resta a certeza de que ela só irá embora quando mais uma vez eu finalmente atender a todos os seus anseios...

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

[Conto] O último cometa do século! (versão 3)

- Dona Clotilde, não tenho mais nada para conversar com a senhora! Aliás, já faz mais de um mês que a senhora não trabalha mais conosco...
- Mas Seu Gregório, o senhor sabe que eu sou uma mulher de Deus! Sou evangélica! Aquilo que aconteceu foi um momento de loucura – e a culpa foi toda daquele cafajeste do Adamastor! O senhor acredita que mesmo depois de tudo o que aconteceu, ele sequer me ligou para saber como eu estava? Passou meses flertando comigo durante o serviço, se fazendo de homem sério, e no final o que aconteceu? Sequer falou comigo depois que conseguiu o que queria! Como o senhor sabe, eu sou uma mulher sozinha desde que o Cléverson, meu marido, saiu de casa – isso já faz cinco anos, e desde então eu continuei imaculada...
- Dona Clotilde, não me interessam seus problemas pessoais...
- Mas, pelo amor de Deus, o senhor tem que me ouvir! Eu sou uma mulher sozinha há mais de cinco anos, e preciso do emprego para pagar minhas contas! Não tenho filhos, nem irmãos, e todos os meus parentes já morreram – além do mais, eu vim do interior muito nova pra esta cidade imensa, não tenho com quem contar! Minhas únicas amigas são da igreja, e todas são casadas – não vão poder me receber até que eu consiga um novo emprego. Moro num conjugado num bairro distante, e se eu não pagar o aluguel, o senhor já sabe, né?! O proprietário já ameaçou me botar pra fora na pancada! Na pancada! Pra pobre, o senhor sabe como é a justiça, né?! Sou uma mulher de idade, Seu Gregório: não conseguirei um emprego como este – esse mundo não dá vez para mulheres da minha idade! Eu juro, Seu Gregório, eu vinha trabalhar todos os dias pontualmente, nunca me insinuei, sempre usei o uniforme do condomínio, comportada, nunca causei problemas, sou uma mulher de idade, evangélica...nunca dei motivo nenhum para ele me atacar daquele jeito! Desde que meu marido saiu de casa, entreguei meu corpo a Jesus! Quando saio, é para ir à igreja – e sempre com saia comprida, cabelo preso e sem maquiagem. Sou dizimista. Sigo tudo o que o pastor nos ensina durante os cultos! Já estava decidida a não ter mais nenhum homem na minha vida, até que aquilo tudo aconteceu...sou uma mulher casada com o nosso Senhor Jesus Cristo, Seu Gregório...
- Sei...
- O Adamastor não – vinha sempre com aquele bafo de cachaça, e apesar do jeito rude dele na frente dos outros, quando estávamos a sós ficava me paquerando, dizendo gracejos, me olhando com malícia. Eu sempre continuei na minha, esperando que ele me convidasse para sair, para conversar – mas não! O Adamastor queria o mesmo que todos os homens querem – só eu que fui burra e não percebi a tempo...como sou burra! Todos sabem que ele é um sujeito sozinho, por isso é tão rabugento! Ou é sozinho porque é rabugento, agora não sei mais! Acho que ele ficou rabugento assim desde que a mulher e a filha foram morar no interior – ele diz para todos que ela foi morar com a sogra, mas todos comentam que ela arrumou é outro homem mesmo, porque não agüentou o Adamastor. Não duvido nada – aquele machista, pudim-de-cachaça! Mas no fundo eu sempre o defendi, quando todos os outros funcionários começavam a falar mal – o senhor sabe como é o gênio do Adamastor, né, não se dá bem com ninguém, e todo mundo sabe que nunca foi mandado embora só por ser antigo no condomínio. Dizem que ele está aqui desde muito moço! Mas eu via ele com certa simpatia, afinal somos todos criaturas que Deus colocou na terra para viver em harmonia...
- Dona Clotilde, eu realmente tenho outras coisas para fazer...
- Então...naquele dia, o Adamastor saiu apressado, e voltou logo em seguida, sem dizer aonde ia, levando uma caixa de papelão embaixo do braço – todo mundo notou, mas como ele não costuma ser simpático com ninguém, ignoramos...enfim, continuei meu serviço normalmente, limpei o saguão, varri os corredores, passei a flanela nos espelhos dos elevadores, tudo como de costume, até que tive que subir ao terraço para guardar o material na salinha da limpeza, para trocar de roupa e ir para a novena de quinta-feira. Quando cheguei no terraço, fiquei estarrecida com o que estava acontecendo ali: Adamastor se masturbava olhando as janelas dos vizinhos! Fiquei paralisada com aquela cena horrível! Seu Gregório, o senhor sabe que nosso Senhor Jesus Cristo condena a masturbação, não é?? O pastor nos disse de uma passagem na bíblia onde o Senhor Jesus ficou quarenta dias no deserto, e comentou sobre esse assunto...mas enfim! Fiquei paralisada com aquela cena horrível! O Adamastor veio na minha direção, tentando disfarçar o volume em suas calças, e falando sobre cometas, lunetas, e um monte de baboseiras sem sentido, só para me distrair; quando chegou perto de mim, me segurou pelos cabelos e me jogou de joelhos no chão! Não tive tempo nem de reagir, Seu Gregório: em questão de segundos ele já havia ejaculado em minha face, e enquanto eu tentava limpar meu rosto lambuzado, ele levantou minha saia, começando tudo aquilo que o senhor presenciou! Ele tinha um bafo de cachaça que só de lembrar me dá ânsias – aquele homem horrível em cima de mim! Não consegui reagir; ele era mais forte que eu, e conseguiu me dominar! Quando dei por mim, o escândalo já estava armado, as pessoas olhavam nossas vergonhas expostas como se fossemos animais, e o senhor nem ouviu nossas explicações! Seu Gregório, eu fui vítima de abuso sexual dentro desse prédio – o senhor sabe que eu poderia até entrar com uma trabalhista...
- Mas Dona Clotilde, quando eu cheguei ao terraço a senhora estava por cima do Adamastor...
- Seu Gregório, o senhor está se prendendo a detalhes pequenos! Como eu ia lhe dizendo, a culpa foi toda do Adamastor; eu preciso desse emprego, pelo amor de Deus...

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

[Conto] O último cometa do século! (versão 2)

Muito prazer! Meu nome é Adamastor e sou o chefe dos ascensoristas de um belo prédio no centro da cidade – cargo que ganhei por merecimento, pois sigo no posto desde os dezenove anos, quando cheguei da Bahia. No que o síndico precisar, sempre estou à disposição, e tenho certo respeito dos outros funcionários justamente por ser o homem de confiança do prédio – qualquer desvio de conduta, de um atraso ao desleixo com o uniforme, eu encaminho ao Seu Gregório, para que tome as devidas providências. Sei que os outros funcionários falam mal de mim pelas costas, por ser muito rigoroso, mas não sei o que seria desse prédio sem mim! Não que ganhe mais que os outros para me comprometer com tais coisas, orçamento de condomínio é curto, sabe como é...mas fico satisfeito pelo respeito que a posição impõe aos outros. Agradeço a Deus todos os dias pelo meu emprego; na minha idade não é fácil arrumar nada melhor, e depois de tanto tempo, a única coisa que me especializei mesmo foi na lida com os elevadores – às vezes o elevador trava e eu consigo abrir a porta antes mesmo do técnico chegar, o que é um grande alívio para quem está preso lá dentro. Olha, nunca tive problema nenhum no emprego, até ontem, mas a culpa não foi minha! A culpa foi toda da Clotilde, da limpeza - uma coroa que é a cara do Zacarias, principalmente quando ri! Vou contar desde o princípio, para que você entenda melhor a história. No final, você me dará razão!

Acordei naquela manhã sonhando com minha ex-mulher, com uma enorme ereção. Não é muito normal acontecer, mas confesso que às vezes sinto falta daquelas carnes – um dia ela tomou um ônibus pro interior, levando minha filha para morar na casa da minha sogra, e nunca mais deu notícias, nem eu procurei. Até hoje não entendi direito o que aconteceu, e não sou homem de correr atrás de mulher. Duro é assistir novela sozinho. Bom, como dizia, acordei animado, e no caminho do ônibus decidi comprar esta luneta pra ver o último cometa deste século – como anunciou no Jornal Nacional. Fazia um calor infernal já pela manhã, e o asfalto soprava um bafo quente. Nenhum sinal de chuva nos próximos dias. Os camelôs espalhavam seus produtos pelas ruas; um carro-forte atrapalhava o trânsito na esquina de baixo, com seguranças armados e escolta da polícia; o funk soava forte no som de um Passat 82, com a lataria podre; buzinas gritavam o berro do recém-nascido esquecido dentro do carro, enquanto o calor cozinhava tudo isso em uma cena do juízo final. O serviço correu normal naquele dia; saí pontualmente, tomei uma cachacinha um pouco mais à frente, e fui até a loja; com o embrulho embaixo do braço achei melhor tentar montar tudo na cobertura do trabalho mesmo. Pegar o ônibus lotado com aquela caixa debaixo do braço seria complicado demais. Custou metade do meu salário, mas queria muito ver de perto o cometa e como o lojista parcelou em dez vezes no cartão de crédito, acabei comprando – por algum motivo estranho, meu crédito no cartão é bem maior que meu próprio salário. Parei pra tomar uma cervejinha antes de voltar pro prédio, só pra fazer uma hora e refrescar o calor.

Pois então! Perto das seis e meia, entrei apressado tentando não chamar a atenção dos outros funcionários, subi, e montei a parafernália por lá, e como ainda estava claro, comecei a olhar as janelas dos prédios em volta. Tudo muito chato, gente chegando nos prédios residenciais, gente se descabelando de trabalhar nos escritórios, e na janela de um dos prédios, um coroa mandando ver na secretária deliciosa – fiquei ali assistindo aquilo tudo, até que o pior aconteceu. A ereção da manhã tinha voltado com toda a força, o bicho latejava, e eu tomei um susto quando senti a Clotilde chegar de surpresa e botar a mão dentro da minha cueca. Essa mulher vive me dando indiretas, mas não tem cristo que agüente: é muito xarope e, além disso, é um dragão! Tentei disfarçar o volume na calça, falei sobre o cometa, sobre a luneta, mas ela já tinha subido decidida – quando percebeu minha ereção não teve dúvidas, me olhou com cara de fêmea no cio, ajoelhou e começou a me chupar. Tá certo que a ereção não era pra ela, e que ela não era a coisa mais atraente do mundo, mas não consegui me controlar e mandei tudo na cara dela, que depois me puxou pro chão com tanta força que eu acabei caindo no chão. Tem coisas que fazem o homem voltar a ser bicho. Só voltei a mim quando ouvi o Seu Gregório gritando nossa demissão para uma platéia de janelas à nossa volta – mandou a gente embora sem pensar duas vezes. Uma vizinha havia ligado indignada para a portaria. Algumas crianças já ensaiavam jogar água fria na gente. Os outros funcionários não paravam de rir de mim – o São Jorge do condomínio. Clotilde, semi nua, se escondia atrás de mim, com aquele corpo de carnes flácidas e sua boca quase invertebrada. Com o que gastei na luneta, poderia ter feito umas quinze visitas às camélias do passeio público – mais novas, com dentes, camisinha, e preservando meu emprego! Do céu ao inferno num piscar de olhos! Pior foi perceber depois que o cometa tinha passado durante aquilo tudo, não sei bem se enquanto comia a Clotilde ou se durante a repercussão do caso – só sei que perdi o cometa e o emprego no mesmo dia, e agora não tenho nem como pagar a luneta. Sou uma pessoa de Deus, mas minha vontade é de matar aquela faxineira dos infernos. Mas voltando ao que eu queria lhe dizer, por isso estou aqui, meu senhor: tem como o senhor receber essa maldita luneta de volta? Sequer foi usada...

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

[Conto] O último cometa do século! (versão 1)

Adamastor era um sujeito meio sedentário, meio alcoólatra, meio obeso, meio coroa. Quase sem amigos, quase sem dinheiro, quase sem sair de casa. Sem mulher, sem rumo e sem objetivos. Com cabelos brancos, com barriga e com uma preguiça indomável. Não que sua auto-estima fosse algo desastroso: era apenas um sujeito adepto de não fazer muitas escolhas, muito menos de tomar decisões mais ousadas. Simplesmente se recusava a escolher, nadava conforme a maré, e tentava não se envolver com as coisas. Acordava cedo e tomava café-com-leite, pão, margarina e mussarela, invariavelmente. Depois saía pontualmente para o trabalho, onde era ascensorista de um velho prédio no centro da cidade desde os dezenove anos. Mantinha-se no cargo por ser sempre o braço direito do síndico, fosse ele quem fosse, delatando qualquer desvio de conduta dos colegas mais displicentes, caso necessário. No almoço, era feijão, arroz, bife e salada, com suco artificial de caju. De noite, ao chegar em casa, repetia o lanche da manhã e ia dormir depois da novela – nunca sem antes esquecer de rezar um rosário completo. Nos sábados se divertia assistindo a um decadente programa humorístico, permitindo-se ir até um pouco mais tarde. Não gostava de praia, nem de mato, nem de sol, nem de frio, nem de esportes, nem de cigarros, drogas ou afins. Quando saía, era sempre com um velho amigo de infância, num bar perto de casa, para tomar uma cervejinha gelada – sempre da mesma marca – e falar do futebol, afinal ninguém é de ferro. A ex-mulher levou a filha para o interior, para morar com os avós, e nunca mais deu notícia – e como ele mal tinha dinheiro para se sustentar, nunca se incomodou com a pensão alimentícia. Tudo muito tranqüilo, incluindo sua vida sexual – uma visita ou outra às caminhantes noturnas do passeio público lhe tiravam a tensão do dia-a-dia. Gostava de prostitutas; eram sinceras, acessíveis, e não lhe exigiam nada que não estivesse realmente disposto a fazer, como enviar flores ou um cartão de aniversário, ou ficar ouvindo sobre como seu dia foi entediante. Sua grande expectativa nos últimos dias era a passagem de um cometa pela terra, o último deste século segundo o apresentador do Jornal Nacional - a única vez que havia visto um, foi em sua infância, no interior da Bahia, a cidade inteira reunida na praça para assistir o fenômeno – agora era uma oportunidade única para reviver aquela experiência. Estava quase decidido a comprar uma luneta que custava metade do seu salário, mas ainda tinha dúvidas.

No serviço tudo continuava da mesma maneira. Adamastor era a autoridade entre os ascensoristas e porteiros do prédio, e motivo de deboche quando não estava entre eles. Além de todos os porteiros e ascensoristas nada simpáticos à sua presença, havia uma mulher disposta a fazer-lhe de graça tudo aquilo que as meretrizes lhe faziam cobrando, a Clotilde, da limpeza, mas a quantidade de palavras inúteis que ela conseguia falar em menos de um minuto faziam as quinze pratas e o amor frio valerem a pena. Clotilde era daquelas pessoas sozinhas e desinteressantes; nunca acrescentava nada, parecia falar com desespero por atenção ou para não se sentir só, e com certeza ficaria no seu pé. Fazia monólogos de vinte minutos sobre as coisas que fazia em casa, sempre sobre tarefas básicas e óbvias, como regar as plantas, fazer café ou a depilação, sem sequer perceber que ninguém estava prestando atenção, fazia uma pausa de dez minutos, e engatava num novo monólogo sobre a consulta médica, um exame, ou uma comida que não lhe caiu bem. Com certeza ficaria no seu pé – e continuaria no seu pé por um bom tempo! Além disso, era gorda e não tinha os dentes da frente e sua risada parecia a do Zacarias; faltar-lhe os dentes tudo bem, a gordura até dá para acostumar, mas rir igual o Zacarias não – ou você consegue imaginar a mulher-Zacarias sendo sensual de alguma forma?! Melhor manter tudo como estava, e assim eram seus dias, dia após dia, café da manhã, almoço e janta; térreo, Clotilde, quinto andar; desce, abre a porta, fecha a porta, sobe; sexta feira, passeio público, prostitutas; vida sem escolhas e sem novidades, deja vu no domingo, tomando cerveja, futebol e pessoas passando pelas calçadas desertificadas pelo sol.

Acordou naquela manhã com uma forte ereção – seria um presságio? Adamastor, já com alguns cabelos brancos, seus quase sessenta anos, e uma já imponente barriga, considerava sua vida sexual normal para um sujeito como ele. Não era rico, nunca foi bonito, não sabia se arrumar, e só entendia de futebol – mesmo assim só na teoria, pois na prática era sempre o último a ser convidado para as peladas dos finais de semana. O fato é que houve uma real empolgação naquele início de dia, talvez por causa da aproximação do cometa, e logo que terminou o expediente, saiu em busca de uma loja para comprar uma luneta e observar melhor o fenômeno celeste. Cachacinha pra tomar coragem, partiu com metade do salário parcelada em dez vezes no cartão e a caixa debaixo do braço, só faltava arrumar um lugar alto para observar o fenômeno. Andar no ônibus lotado com aquela caixa era inviável, melhor arrumar um lugar pela cidade mesmo. Escolheu o terraço do prédio – o porteiro da noite devia uma para ele, e não ia se indispor com o leva-e-trás do síndico. Tomou umas cervejas enquanto a tarde passava, e voltou ao prédio perto das seis e meia, sentindo a sensação refrescante que o álcool dava às gotas de suor que lhe escorriam a testa. Cumprimentou rapidamente alguns funcionários que estavam no saguão, e subiu para a cobertura do prédio, onde ficavam as antenas e a casa de máquina do elevador. Quando o sol terminou de se pôr, começou a testar nas janelas dos prédios à volta, vendo algumas pessoas fazendo cerão após o expediente, outras vendo pornografia no computador, com semblantes sérios, e até uma jovem secretária fazendo um ‘extra’ com o chefe, em cima da mesa. Ficou observando entretido o ato quando foi surpreendido por uma mão acariciando seu pescoço. Clotilde o seguiu até o terraço, curiosa com o que estaria fazendo ali depois do expediente. Explicou impaciente sobre o cometa, a oportunidade única, a luneta, e quando percebeu Clotilde já estava ajoelhada à sua frente, esfregando-lhe as gengivas e uns tocos de dente que ainda lhe sobreviviam na boca. Não soube como lhe dizer não – não sabia dizer não, nunca soube. Foi ali mesmo, melando óculos, cabelo e aquela boca careca que a fazia parecer com o Zacarias. Ela engoliu e o puxou para o chão, determinada, e tudo terminou ali, sem camisinha, sem muita vontade, mas sem muita escolha, com o cometa observando silencioso a cena, enquanto cortava os céus da cidade pela última vez naquele século. A luneta parcelada em dez vezes presenciou sozinha o espetáculo celeste, enquanto Clotilde se sentia amada.

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

[Ensaio] A mente e a liberdade.

Consideremos umas idéias: a capacidade de raciocínio diferencia o homem do animal; perante a lei todos são livres; a racionalidade se desenvolve de maneiras diferentes para cada indivíduo; por isso, cada um exerce à sua própria maneira a liberdade que a lei atesta. Mas e daí? Hegel dispara, sem clemência: “A liberdade é a necessidade compreendida”. Necessidade compreendida? Mas não existia a liberdade? Ou ela é apenas um sofisma demagógico, uma sensação ilusória? No imediatismo latente do século XXI, esquivando-se entre loucura do centro da cidade, entre pessoas tentando vender algo urgentemente, entre pessoas pedindo, entre pessoas indiferentes, resta uma questão chave não só para as humildes manifestações literárias deste blog, mas também para nossa própria sobrevivência enquanto indivíduos: o que significa a liberdade? Ou melhor, como nossa liberdade pode servir para alguma coisa, entre tantas cicatrizes de relações materiais e instantâneas? Quando se fala em liberdade, a primeira imagem que nos vem à mente é a de um negro apanhando acorrentado, igualzinho a professora nos ensinou na escola! Ele está preso, logo não é livre, lógico. A partir de 13 de maio de 1888 todos passaram a ser livres no Brasil, pelas mãos da bondosa princesa – foi o que lhe ensinaram, não foi?! Mas e se a liberdade for algo além de cativeiros, cordas e grilhões? E se existir dentro de nós mesmos um cativeiro onde estejamos apanhando acorrentados?

Óbvio que a liberdade física é um dos principais signos da dignidade. Mas existem correntes que só podem ser rompidas dentro de nós mesmos. O homem é um ser racional justamente por conseguir encontrar soluções indefinidas para seus problemas – diferente de um cachorro, que depois de adestrado passa a responder de forma ainda mais previsível que o normal – seu universo de escolhas são meramente instintivos, dependem de estímulos externos. O cachorro pode sair pela rua, andando aleatoriamente – pode até mesmo ampliar seus horizontes, perambulando por ruas desconhecidas – e depois da jornada ainda pode voltar pra casa, ou continuar na rua; mas nunca decidirá poupar um pouco de sua ração por mês, para angariar fundos e conhecer a Indonésia, nem se interessará mais por cadelas que leiam Dostoievski do que pelas que passem horas se enfeitando no Pet-shop. Até um pouco além disso: Santo Agostinho diferencia Liberdade e Livre-arbítrio, este sendo uma faculdade livre de eleição, independente dos conceitos axiológicos, enquanto a liberdade é o livre-arbítrio usado para construir algo – para o padre filósofo, só somos livres quando buscamos o ‘bem’. Não adianta apenas agir de acordo com a vontade. Hegel sorri mais uma vez, incógnito – “A liberdade é a necessidade compreendida”! Juntando as peças: podemos levar a vida como bois no pasto, ou mesmo como cães vadios; podemos tomar decisões pautadas na nossa própria satisfação, sem muitas considerações externas; ou podemos agir coordenadamente, raciocinando sobre o maior número de hipóteses possíveis (questão de capacidade individual). A escolha, sobretudo enquanto ‘processo’ de escolha – ou melhor: a consciência da escolha. A liberdade não é um status, nem mesmo uma idéia: é um movimento contínuo, autoconstrutivo, onde o indivíduo nunca o é plenamente – apenas ‘vai sendo’, no decorrer de seu exercício. Age livremente. O indivíduo é o processo de sua própria liberdade – e por ser processo, se deixar de exercê-la, volta a pastar! No meio campo, Kierkgaard corre pra linha de fundo e cruza: ninguém quer ser ‘o pior’ possível, apenas o é quando não encontra em sua consciência a resposta que necessita – ao tomar consciência do ‘erro’, reconhecendo-o como tal, o reflexo natural é repará-lo ou ao menos deixar de praticá-lo – evoluir! É a sabedoria popular: “errar é humano, insistir é burrice”! Nascemos pedra bruta, a vida nos dá a erosão, o clima nos influencia, e nós vamos lapidando nossa própria consciência de acordo com as ferramentas que encontramos pelo caminho. Alguns têm as mãos vazias, outros carregam marretas, outros marretas e cinzéis: cada qual com o que conseguiu juntar pelo caminho. É a diferença entre ter filhos aleatoriamente, escolher ter no máximo dois, ou não ter nenhum. É a escolha da profissão, dos amigos, e do banco onde poupar para a aposentadoria. É escolher entre ir à pé, de carro, ou de bicicleta. É escolher entre almoçar salada, um prato refinado, ou o junkie food. É decidir ler algo interessante, preparar um bolo, ou ficar assistindo novela. Enfim, é a escolha – e sua consciência que diga qual é a melhor em cada caso!

“A liberdade é a necessidade compreendida”, exclama mais uma vez o alemão! Sim, é ‘compreendida’, pois é absorvida por um processo racional de escolhas; é ‘necessidade’, pois a vontade é imprescindível no processo de escolha – e só a sua própria consciência poderá lhe indicar o que é ou não necessário! A necessidade sem compreensão é imposta, logo não é livre – e a compreensão sem a necessidade dificilmente alimenta a ‘praxis’ que impulsiona o movimento. O eixo do motor da liberdade está na compreensão – e como motor, precisa de um combustível: a escolha consciente, mais uma vez! Raciocinemos, então! Cada letra, cada vírgula, cada ponto final! Cada gole de cerveja, cada noitada, cada história. É a sua escolha – e só ela – quem lhe dará as ferramentas necessárias para soltar os grilhões que lhe acorrentam o tornozelo ao solo. Cada escolha, consciente ou não, lhe dará uma nova ferramenta e cabe a você aproveitá-la ou não. Pense, aceite, altere, negue ou recuse, mas escolha. Escolha antes que alguém escolha por você. A coletividade é a Esfinge, de prontidão, enigmática: “decifra-me, ou te devoro”. Seja livre, conheça-se, pense e exista! Enfim, liberte-se!

terça-feira, 5 de agosto de 2008

[Conto] O Átrio e o Ventrículo.

Meu nome é Benedito, tenho trinta e um anos, estou limpo há três dias, e não sei até quando conseguirei me manter assim. Não tenho muita experiência em falar em público, e não sei ao certo o motivo de compartilhar essa história assim, com todos vocês, mas algo me impulsiona, e sei que me sentirei melhor após o relato. Quero falar não sobre o amor da baixa literatura, das canções populares, nem um amor de novela, pasteurizado e sem maiores impactos na existência do indivíduo. Para mim, é plenamente possível amar várias mulheres ao mesmo tempo – sem um sentido de libidinagem, como pode parecer à primeira vista, mas um amor verdadeiro, sincero e entregue para várias pessoas ao mesmo tempo – e isto tem confundido um pouco as pessoas com quem me relaciono, causando-me algumas angústias nos últimos meses. Vou contar minha história, e espero não ser julgado sumariamente por isso, pois tudo o que fiz foram escolhas baseadas nos meus desejos conscientes, na minha liberdade e nas responsabilidades inerentes.

Primeiro conheci Manoela numa tarde ensolarada de outono – eu de ressaca, andando no parque, ela sentada na grama, lendo Veríssimo. Morena de olhos claros, lábios finos, e um olhar com um pinguinho de timidez. Mexeu mesmo com meu coração. Trocamos olhares na primeira volta, e na segunda sentei ao seu lado. Conversarmos demoradamente sobre assuntos diversos, cães, viagens, filhos, horóscopo, vinil, livros, hinduísmo, e bares onde ouvir MPB. Peguei o telefone, e combinamos de ver um show de bossa nova na quarta seguinte – tudo muito próximo, mas ao mesmo tempo mantendo uma respeitosa distância. Fui pra casa com um sorriso de ‘conquistador barato doido pra se enrolar’ na boca, tomei um banho, fumei um, e me mandei pro inferninho de costume, para tomar uma gelada e observar o movimento. Ainda pensava bastante em Manoela, com seu jeitinho de mulher para casar. Cerveja vai, cerveja vem, conversas cruzadas, e de algum lugar surge na minha frente Márcia, amiga da amiga de uma amiga, que era de Sampa, mas morava aqui há cinco meses. Falava sobre Heidegger sem ser muito clara no que tentava de dizer, como quem pisa devagar, medindo o terreno, até ter certeza de que ninguém a sua volta sabe mais sobre o assunto do que ela própria. Gesticulava de uma forma divertida, falava com as mãos, e de quinze em quinze minutos ia ao banheiro com uma das amigas. Atração imediata, sexo intenso, e a imagem marcante de acordar todo arranhado, com ela batendo as portas da cozinha do meu apartamento, preparando o café da manhã, aquelas pernas finas, cobertas apenas por uma camisa minha que ela vestiu como se fosse pijama. Da mesma forma como surgiu, desapareceu no dia seguinte, sem deixar sinais. Passei o início da semana sóbrio, tomando apenas umas cervejas em casa, até que na quarta feira de tarde liguei para Manoela, para irmos ao show. Combinamos, passei na casa dela, e fomos ao teatro. Ótimo show, embora meio paradão, e no final me pediu para deixá-la em casa cedo, pois precisava resolver alguns problemas de trabalho no dia seguinte. Tradicionais malhos na frente da casa dos pais dela, e voltei pra casa com os ovos doendo, alucinado por seus suspiros no meu ouvido a cada investida nos atritos entre nossas calças jeans, e uma frase na cabeça “Não, não, estamos indo rápido demais!”. Não rolou nada além, mas mexeu ainda mais com meus desejos, tanto que não agüentei a ansiedade e liguei para ela de volta na sexta, para completarmos nossa programação. Saímos, tomamos um vinho, e fomos para o meu apartamento. Manoela tinha um sexo úmido, lento e ofegante, que durou até às quatro da manhã, quando me pediu para levá-la de volta para casa. Estava decidido a passar um tempo com Manoela, sossegado como um bom homem apaixonado e tudo ia correndo tranquilamente, até que dois dias depois Márcia surgiu novamente, tão inesperada quanto da vez passada, e de tantas outras vezes que surgiria em minha vida, como um raio, ou melhor, consumindo dos raios a energia com que se impunha na cama. Estava apaixonado por Manoela, mas o sexo intenso e vigoroso de Márcia me prendia de uma forma que acabei alimentando um relacionamento com as duas, uma como namorada dos sonhos e candidata a futura mãe de meus filhos, regrada e responsável, outra como amante dos sonhos, selvagem, hiperativa e inconseqüente. Foi assim que minha vida começou a seguir um rumo que até então eu sequer imaginaria.

Durante o primeiro mês, tudo se manteve na normalidade, namorada de um lado, amante do outro, cada uma me confortando à sua maneira. Mas por volta do início do segundo mês nesse ritmo de alternâncias, eu mesmo não consegui mais diferenciar entre uma e outra, e passei a esperar uma conduta mais independente de uma, e mais carinhosa da outra. Não estava mais satisfeito com o que nenhuma apresentava. Embora a moral cristã não me afete como minha mãe gostaria, manter uma vida dupla e secreta não é das tarefas mais fáceis, e para um amador como eu o sentimento por ambas foi se misturando, a forma de atenção que julgava necessária a cada uma foi se convertendo, e a existência de ambas em minha vida me deu provas de que num relacionamento nem sempre os resultados dependem de nossas intenções, por mais ambígua que a relação possa ser. O sexo lento e úmido de Manoela havia se tornado mais intenso, cativante, e a cada dia me dava mais prazer, enquanto seu jeito extremamente sentimental estava saturando minha paciência com detalhes pequenos e minando todo o encanto existente; Manoela, de uma hora pra outra, tornara-se a representação do puro prazer sexual. Por outro lado, a forma insana como Márcia buscava o sexo e alguns antidepressivos não prescritos imprimiam-lhe um aspecto frágil, tudo não passando de uma encenação ávida para preencher seu interior com algo que lhe faltava, e essa carência mexia com meus sentimentos – uma mulher depressiva não pode parar! Passei a sentir um tesão incontrolável pela mulher que até então via como a possível mãe de meus filhos, e um carinho terno pela mulher que no princípio era para representar somente a satisfação dos prazeres da carne – de forma que, mais uma vez, não conseguia abrir mão de estar com nenhuma das duas, por desejar ambas, cada uma à sua maneira. Sinto que meus colegas de trabalho perceberam a mudança no meu comportamento, de alguma maneira, mas não abri espaço para que viessem conversar comigo – apesar de chegar ao trabalho visivelmente abatido, desinteressado, e com a barba para fazer. Não que alguma delas quisesse que a relação mudasse da forma como estava acontecendo; obviamente Manoela desejava aumentar a volúpia de nosso sexo, mas também desejava manter-se no papel de namorada, que ela julgava ser única, enquanto Márcia havia construído uma barreira ao redor de seus sentimentos, tornando muito mais fácil o sexo com alguém que não estivesse interessado neles. Márcia insistia em aparecer e sumir no meio de minhas noites, como uma gata no cio, e quando consegui começar a entrar no emaranhado complexo de seu lado emocional, o sexo passou a não render mais da mesma forma. Márcia se sentia perseguida, Manoela se sentia abandonada. Márcia queria liberdade, Manoela queria ser cada vez mais presa. E eu, no meio desse turbilhão de transformações, cercado pelas reações hormonais de cada uma delas, não conseguia me decidir por nenhuma das duas, buscando em cada uma exatamente tudo o que, no princípio, me fascinava justamente na outra.

Na metade do terceiro mês, Márcia foi internada, e descontando umas visitas supervisionadas à clínica, nos horários permitidos, minha relação com Manoela tornou-se mais próxima, ao ponto de ser apresentado aos seus pais, com direito a jantar e tudo – uma solenidade para a qual eu não estava preparado, mas tinha encarado com extremo carinho. Após dois meses de relacionamento com Manoela sem ter nada com Márcia a não ser nossos papos melancólicos nos horários de visita, creio que vocês já consigam imaginar para que lado tudo estivesse indo: as coisas haviam voltado ao normal, Manoela no papel de namorada única, exclusiva e futura mãe de meus filhos, e Márcia apenas como uma lembrança libidinosa de momentos de loucura. De fato, a relação havia se fortalecido, e já pensávamos inclusive em juntar nossas coisas em breve. Até minha relação no trabalho voltou ao normal, e eu voltava a chegar no horário – tudo mais ou menos nos trilhos de volta. Mais ou menos...no dia que Márcia saiu da clínica, lá estava eu, com um buquê de flores esperando na porta, pronto para dar um fim à nossa quase-relação. Juro pra vocês que quase aconteceu isso, mas na verdade fomos para o meu apartamento, e tudo correu de uma forma suave, leve e apaixonada como nunca havia acontecido antes, e Márcia quase me causa um infarto ao dizer baixinho no meu ouvido um ‘eu te amo’ que fez estremecer todas as minhas verdades. Dormi um sono pesado, ao lado de seu corpo encaixado ao meu de uma forma como nunca antes havia acontecido, acomodado na maciez de suas pernas finas. Isso aconteceu há cinco dias atrás. No dia seguinte, lá fui eu até a casa de Manoela, decidido a terminar o relacionamento. Estava realmente decidido, pois já pressentia que alguém sairia muito machucado dessa história, e essa vida dupla não podia mais persistir. Manoela me recebeu com um beijo totalmente desencorajador para o fim de um relacionamento – minhas pernas simplesmente travaram. Ela tinha uma novidade incrível pra contar, provavelmente sobre a entrevista de emprego do dia anterior, ou algo assim, e por isso achei melhor ouvir tudo antes de terminar o relacionamento, mas ela me deu a notícia como quem joga um tijolo no meu colo: está grávida! A mulher que eu conheci a uns seis meses atrás como possível candidata a mãe de meus filhos tinha sido efetivamente eleita, e agora eu não tinha mais como voltar atrás. Apenas sorri um sorriso mudo, abracei-a, e voltei pra casa dizendo que precisava assimilar melhor a idéia. Voltei pela rua com passos incertos, comprei duas garrafas de tequila, mais alguns itens de necessidade e me tranquei no apartamento. O pessoal do trabalho me ligou diversas vezes, mas não fui capaz de atender o celular e desliguei. Durante meus sonhos, Márcia e Manoela giravam em torno de mim, envolvidas em cores psicodélicas, rindo, descalças, vestidas com o mesmo vestido branco e com os cabelos molhados, girando cada vez mais rápido, até se tornarem a mesma pessoa – quando acordei desse sonho, resolvi procurar vocês. Como já sabem, me chamo Benedito, tenho trinta e um anos, e estou sóbrio há três dias, mas não sei mais quanto tempo vou agüentar.

quarta-feira, 30 de julho de 2008

Ausência...

A vida tá difícil, vários textos começados, mas nenhum terminado - justamente no momento que eu estava mais empolgado na literatura, a inspiração saiu pra curtir o final de semana, tomou um porre, e até agora não voltou pra casa...mas estou aqui na transpiração, empolgadão na leitura sobre Kierkgaard e umas outras paradas, e quando a inspiração voltar vai me encontrar com caneta e papel na mão!

sexta-feira, 18 de julho de 2008

[Ensaio] Uma prece a Dionísio

Um pouco de mitologia grega. Dionísio, associado às festas, ao vinho, ao lazer e ao prazer, foi o único deus do panteão grego filho de um mortal. Segundo a mitologia, a divindade ordenou que lhe trouxessem uma bebida que alegrasse e inebriasse os sentidos. Experimentou de tudo, mas não se sentiu satisfeito até descobrir o vinho – ficou encantado com suas cores e nuances, ao mesmo tempo em que sentia sua textura e o aroma de fruta exalado pela bebida. Quando a bebida tocou seus lábios, sentiu a maciez do corpo do vinho e percebeu seu sabor único, suave e embriagador, num prazer singular. Sentiu o buquê, resultante do envelhecimento do vinho, e percebeu seu gosto mudando, como se abrisse com o tempo, enquanto descansava em sua taça, delirando com as sensações finais deixadas pelo vinho na boca. De tão alegre, Dionísio passou a abençoar e a proteger todo aquele que produzisse bebida tão divinal, sendo adorado como deus do vinho e da alegria. De fato, cada vinho possui sua personalidade, sua origem, sua gestação, sua idade, sua história – nenhum vinho é absolutamente igual, basta saber degustá-lo.

Para aproveitar essa característica singular em sua plenitude, surge a necessidade de se compreender melhor o que se está degustando – e aí, permito-me dizer que apreciar um bom vinho é como relacionar-se com uma mulher madura: se você não estiver preparado para seus prazeres, talvez não aproveite metade do que lhe é oferecido, ou talvez se apaixone cegamente, como se houvesse descoberto uma nova dimensão em sua vida, até então desconhecida – e antes que me acusem de machismo, pela comparação, manifesto minha admiração tanto pelos bons vinhos, quanto pelas mulheres maduras. Não que a firmeza da juventude também não tenha seus encantos, mas o amadurecimento é um processo delicado, cheio de detalhes, cuidados, tempos e repousos, que no fim podem resultar no mais sublime prazer, ou no mais acre vinagre. O amadurecimento mal feito pode resultar num buquê amadeirado demais, envelhecido demais, ácido demais, bouchonneé, adstringente, ou mesmo cru demais – e inexiste virtude em algo que seja ‘demais’. Assim como acontece com o vinho, algumas mulheres têm sua plenitude na idade mais tenra, firme e fechada, enquanto outras necessitarão de um período de maturação mais cuidadoso, para atingir todo seu potencial – quem nunca se deparou, tempos depois, com uma das musas da adolescência já sem qualquer sombra do esplendor de outrora, ou mesmo o contrário: a menina que não chamava a atenção de ninguém aos quinze anos, mas que aos vinte e nove exibe uma sensualidade pungente?!

Cada mulher tem sua personalidade, cada vinho tem sua história, e cada mulher tem seu próprio vinho - sim, há uma espécie de simbiose, de relacionamento, de cumplicidade entre uma personalidade e a outra – um ponto em comum entre seus segredos mais íntimos, talvez. Astrologia? Psicologia? Química? Enofilogia? Bom, prefiro manter-me simplesmente na análise empírica – tentativas e acertos em combinações de possibilidades infinitas. Tomar um vinho com uma mulher não é simplesmente convidá-la para beber, ou para bater papo; é conhecê-la intimamente, é desvendar seus segredos, compreender seus mistérios...mas isso só acontece com o vinho certo, aquele de sua personalidade e no momento certo - o tempo exato que trás uma correlação de sentidos, desejos, texturas e aromas, e é neste exato momento que um prazer metafísico lhes tocará, como Dionísio sorrindo e abençoando seus devotos. Degustar um bom vinho com uma mulher de valor não é o mesmo que degustar um vinho de valor com uma mulher boa – tudo depende do momento e dos objetivos – e creio que a esta altura do texto, você já tenha imaginado a melhor forma de elaborar sua própria prece a Dionísio.

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Caso a colocação de alguma palavra tenha lhe parecido estranha, um glossário pode ajudar: http://www.academiadovinho.com.br/biblioteca/glossari.htm

terça-feira, 15 de julho de 2008

[Ensaio] Fantástico?!

Um leve torcicolo me fez constatar a infeliz e desesperadora baixa qualidade dos programas de TV num domingo - não que já não soubesse isso antes, claro, mas realmente me surpreendi quando vi uma espécie de 'Reality Show' mostrando os problemas familiares de um jovem inglês, usuário de maconha, álcool, e com sérios problemas familiares, sendo transmitida como um verdadeiro show de horrores em pleno horário nobre! Para quem teve a sorte de não assistir ao lamentável programa, uma emissora internacional fez a cobertura dos problemas enfrentados por uma família inglesa, supostamente ocorridos após o filho ter começado a consumir maconha. A TV acompanha o dia-a-dia da família, mostrando inclusive o jovem consumindo drogas, bebendo, e chegando em casa doidão, além de mostrar para todo o mundo todas as discussões familiares, e até mesmo o conselho dos psicólogos. Tudo muito interessante, a fraca audiência da Rede Globo dando sinais de recuperação, pessoas comentando o quadro no dia seguinte no trabalho, tudo ótimo, até chegarmos a uma única questão: E A ÉTICA, ONDE FICA?
Que o doidão tem problemas, isso é indiscutível - e creio que a maconha seja apenas um de seus problemas, talvez o menor deles, mas com certeza está lhe fazendo mal! Talvez esse mal causado pelo uso da maconha esteja ligado a outros problemas - o de que ele esteja usando a droga como uma espécie de 'anti-depressivo', para outros problemas existentes em sua vida...até porque, nesses casos, valhe sempre a lição Tostines: o carinha tem problemas porque fica chapando o cabeção, ou chapa o cabeção porque tem problemas?!? Não sei, e nem pretendo julgá-lo, cada um recebe da vida seu próprio fardo, e só quem o carrega sabe o quanto pesa...mas acho realmente preocupante o excesso de peso que a emissora responsável pela produção do programa e a própria família que permitiu que todo esse problema fosse exposto a público estão jogando impiedosamente nas costas do cara...
O maior problema dele, não é a maconha: é a FAMÍLIA! Por maior que possa ser o amor de uma mãe por um filho, seu despreparo intelectual para lidar com uma pessoa de personalidade difícil pode ter um papel desgraçante - e no caso, não consigo ver de outra forma. Afinal, se a mãe é capaz de expor os problemas do filho assim, para a TV e o mundo, não consigo imaginar limites em suas atitudes e os problemas que ela possa ter causado em sua mente antes mesmo do cara fumar seu primeiro baseado ou botar a primeira gota de álcool na boca. Ou alguém aqui realmente acredita que imprimir um estigma de 'chapado' na testa de um indivíduo comum, divulgando seus problemas mais íntimos para o mundo todo vai lhe ajudar em alguma coisa??? Ele vai entrar para o showbizz por ficar conhecido como o 'doidão' que aparecia na TV?? Alguém está fazendo isso com a intensão de ajudar o cara?! Será que ele conseguirá ter credibilidade perante as pessoas que o reconhecerem?!? Acho que não...e a rede de tv com certeza está lucrando muito com o bizarro programa...será que pagou para a família algum cachê?!?
Esqueceram o ser humano e destroçaram a dignidade do cara, junto com sua individualidade. Duvido muito que isso ajude a curar seus problemas psicológicos; duvido também que ajude a família a 'recuperar' o filho com problemas; da mesma forma, duvido que ajude alguma família com o mesmo enrolo a solucionar seus problemas - no máximo, aquilo tudo serve como um manual do que "não fazer". Supostos especialistas desfilam sua empáfia, apontando soluções e certezas, sem ao menos observar a parte mais bizarra disso tudo: a falta do anonimato no tratamento...ou será que os 'especialistas' ainda não entenderam porque uma das regras principais do AA e do NA é justamente o anonimato?!??

terça-feira, 8 de julho de 2008

[Ensaio] Imagem e semelhança

“Também disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; tenha ele domínio sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais domésticos, sobre toda a terra e sobre todos os répteis que rastejam pela terra.” (Gn 1:26-28)

Ontem estava relembrando meus tempos adolescentes de ‘ateu praticante’, uma fase em que tive imensa necessidade de negar racionalmente a existência do Deus pronto que todas as pessoas tentavam me fazer crer. Sempre achei de extrema ignorância a afirmação de que ‘política e religião não se discutem’ – até porque sempre adorei discutir sobre o tema. Foi um período muito interessante, pois ao passo que não conseguia acreditar em nenhuma crença na totalidade de seus preceitos, acabei por conhecer diversas religiões diferentes e a valorizar seus aspectos mais diversos, não mais como uma afronta ao bom senso, mas apenas como simples características; peculiaridades ínfimas, que talvez representem não o conhecimento cartesiano da verdade sobre Deus, mas apenas e tão somente uma de suas infinitas faces possíveis. Hoje tenho minha própria vida espiritual, independente e segura de si, embora acredite que, por ser algo tão individual, não me cabe expô-la aqui: a crença é minha, e de mais ninguém, não me interessando qualquer rótulo para ela – e é muito provável que nenhum leitor concorde 100% com o que penso, o que também respeito e valorizo.

Bom, se considerarmos a fé como uma justificativa local para os fenômenos desconhecidos, nascidas da soma das experiências individuais repetidas e compartilhadas em um plano comunitário, fica fácil perceber o papel da linguagem oral no decorrer de todo esse processo, pois mesmo quando codificadas em livros, como o caso das religiões hebraicas (judaísmo, cristianismo e islamismo), originalmente os fatos foram sendo contados boca a boca, até alguém ter tempo e conhecimento para passar tudo por escrito. E é justamente sob os escombros da linguagem oral que muitas vezes se escondem as passagens de maior sabedoria dentro das religiões – ocultas sob uma densa camada de poeira que só quando afastadas permitem-nos extrair parte do sumo da sabedoria antiga. Em cada tradição religiosa existente no planeta, o grupo mais velho passou a experiência de sua vida espiritual para os mais novos, que a partir dela criaram seus meios de se portar, de julgar, de se reproduzir e de morrer. Como tal experiência ocorre em um plano íntimo, pessoal, é de se esperar que em cada comunidade surja um modo diferente de sentir a presença dessa força criadora, e que a cada lugar essa força criadora receba um nome diferente.

Embora não seja cristão nem judeu, e isso pouco importe no momento, passei a noite anterior refletindo sobre o trecho da tradição hebraico/cristã que afirma o homem como ‘imagem e semelhança de Deus’. Durante muito tempo, tal passagem fez a massa enxergar na escuridão dessas palavras a imagem de Deus como o velho e barbudo pai de Adão, sentado soberanamente em seu trono nos céus, no papel ao mesmo tempo de déspota, guardião da moral e juiz – considerando como bestiais as religiões que se utilizavam de representações zoomórficas, ou mesmo a teoria de Darwin. Removendo alguns escombros, algumas manipulações (propositais ou não), os antigos possivelmente não acreditassem na semelhança física entre Criador e criatura – mas sim na semelhança interna entre ambos...ou seja, Deus não é semelhante ao homem, mas o homem que é semelhante a seu Deus. Assim, aquele que crê numa Força concentrada no julgamento implacável dos atos de suas criaturas em terra, talvez, em sua imagem e semelhança, torne-se uma pessoa extremamente preocupada com julgamentos, e com a possibilidade de definir um rigoroso padrão moral a ser seguido por todos, para alcançar a salvação, baseado em sua verdade individual, bem como o que crê num Deus vingativo e severo, ou benevolente e ponderado, temeroso e ignorante, terão visões de acordo com cada peculiaridade. Talvez o conhecimento passado pelo trecho seja o de que refletimos em nossos atos a forma como cremos no Deus ao qual nos reportamos, independente de Seu nome, imagens, ou representações.

Essas considerações acabam por tornar o exercício da fé algo ainda maior do que o puro exercício da fé: a forma como cremos é também uma integração entre comunidade, natureza e indivíduo – e por isso mesmo torna-se extremamente discutível, se dentro dos padrões aceitáveis de racionalidade. Quanto maior o conhecimento mútuo, menor a ignorância, a intolerância, o desrespeito – e consequentemente maior será a liberdade de consciência para analisar no que acreditar ou não!