terça-feira, 16 de dezembro de 2008

[Conto] Seduções!



“Pleased to meet you, hope you guess my name,

But what’s puzzling you is the nature of my game”

The Rolling Stones – Simpathy of the Devil (1968)



Muito prazer! Eu bem sei que não é uma visita usual, a minha; prefiro observar à distância, e pela fama que recebo talvez seja o último indivíduo que você gostaria de ver pela frente, mas lhe asseguro, minha bela morena: não estou aqui para impor nada – só peço que me receba com o mínimo de cortesia, e permita-me apresentar-me – caso o que tenho a lhe dizer não cause nenhuma simpatia, irei embora com a mesma imprevisibilidade e distinção com que surgi, como um perfeito cavalheiro. Sou um homem refinado, e não estou aqui para desperdiçar nosso tempo com retóricas sediciosas, por isso não perca seu tempo confrontando-me: depois que eu me for, você terá todo o tempo do mundo para decidir o que fazer. Sem jogos, sem clichês, sem falsos interesses. Pouco me importa o lugar onde você estuda, se já é formada, onde você trabalha, quanto ganha, ou o seu signo no zodíaco – nada disso expressa o ponto aonde quero chegar. Também não estou preocupado com o fato de você gostar de baladas, esportes, ou de novelas, eu moro dentro dos teus momentos, onde você estiver, dentro de cada sorriso dissimulado, de cada olhar hesitante, de cada pensamento abafado no quarto escuro! A existência é um grande processo de interpretação, portanto permita-se interpretar-se a si mesma, e quando tiver realmente certeza de que ainda existe, talvez compreenda o que estou tentando lhe dizer.

Pela curiosidade de seus olhos, insta-me salientar, minha cara: prego a transformação, a audácia; a base do que lhe proponho se sustenta no fato de ser o caos a única saída viável, a partir do momento que o cosmo torna-se demasiadamente inerte e invariável; sou o tempero, o flerte, e a ousadia; sou o olhar através das cortinas do apartamento, famintos pelo turbilhão de acontecimentos que se engalfinham sob o parapeito; sou a curiosidade, o desapego e as alucinações; sou a estrada, o caminho, e o regente do destino, pois meu hálito faz-lhe enxergar o futuro e não se preocupar com ele; o futuro só existe a partir do momento que se torna presente, e você, no fundo, sabe muito bem disso; perto do que lhe proponho, os sofrimentos do mundo se dissipam no ar, como que incapazes de atingi-la; sou aquele que é temido por todos os chefes de Estado, não só por instigar a revolução, como também por buscá-los, absorto, à beira de cada guilhotina, forca ou parede de fuzilamento. Eu sou a bala que sai, o pó que entra, o filho que não volta; sou as faces da mesma moeda: o poder do dinheiro e a vida dos seus filhos eternamente sob escolta armada, entre a casa e a escola.

Mas não se engane, minha bela e sensual morena, cumpro meu destino aparentemente injurioso, tal qual Judas cumpriu sua missão ao entregar Jesus, para que se transformasse em Cristo. Sou aquele que foi encarregado de te convencer a experimentar a Criação Divina por seus próprios olhos, boca, narinas e orelha; com todos os nervos, pelos e sentidos. Os porcos que tentam controlar o comportamento humano através do medo de experimentar são os mesmos que temem meus desígnios sob os escudos da mais falsa fé em um Deus em que ninguém mais acredita, pois as regras do mundo mudam a cada segundo. Fui encarregado como o portador da luz, para conduzi-la entre os indivíduos, e é ela quem exorcizará as sombras que cercam cada templo, cada capela, cada cruz. Não há mistérios, nem jogos de duplo sentido, minha bela – basta que aceite a natureza do meu jogo: as regras já foram previamente definidas por Ele, para que eu livrasse os indivíduos do grande mal que assola a humanidade: o domínio infame e calculista do homem sobre o próprio homem!

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

[Conto] Vazio.

Vazio. Era assim que o espaço-tempo ao redor de Cristina ungiam o apartamento de quarto e sala na esquina mais movimentada da cidade com um sentimento melancólico e obscuro, de origem desconhecida. No rádio, um solo de trompete se contorcia denso entre a sala e a cozinha, agonizando solitário ante um tímido acompanhamento de piano minimalista. Olhou para a conjunção descontínua entre carros e sinais de trânsito efervescendo pelas paredes externas do prédio, embebidos pela chuva e abafados pelas janelas fechadas, enquanto buscava dentro de si um pouco de disposição para preparar o café da tarde. Os guarda-chuvas se encarregavam de um movimento lúdico e inconstante, cobrindo as calçadas com seu luto inanimado. Na cabeceira da cama ainda havia mais três comprimidos de Diazepam, os últimos, guardados como tesouro para enfrentar mais uma tenebrosa noite de domingo, e esperar incógnita a manhã de segunda-feira. Costumava dizer que a culpa de sua solidão era a obesidade e a mecha de cabelo branco que lhe tomava a têmpora, impondo-lhe um ar dracúleo. Cristina era dessas mulheres apaixonadas que nunca estão amando a ninguém, muito mais por conta do pessimismo que lhe é inato do que pela falta de atributos físicos; o negativismo apaga qualquer possibilidade de beleza palpável num corpo pálido, inerte e esquecido. Pediu licença médica da repartição para tratar de uma depressão aguda, e desde então só saia de casa para comprar comida, religiosamente no mesmo horário, todos os dias; mas desta vez, comprou um litro de vodka no lugar do macarrão. Um copo fundo, um cigarro, Bitches Brew passeando por diversas escalas, e o segundo copo fundo fez com que Cristina esquecesse o gás aberto, enquanto procurava algo interessante na televisão num dia chuvoso de domingo – não sem antes vedar a porta com uma toalha de banho molhada.