“Também disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; tenha ele domínio sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais domésticos, sobre toda a terra e sobre todos os répteis que rastejam pela terra.” (Gn 1:26-28)
Ontem estava relembrando meus tempos adolescentes de ‘ateu praticante’, uma fase em que tive imensa necessidade de negar racionalmente a existência do Deus pronto que todas as pessoas tentavam me fazer crer. Sempre achei de extrema ignorância a afirmação de que ‘política e religião não se discutem’ – até porque sempre adorei discutir sobre o tema. Foi um período muito interessante, pois ao passo que não conseguia acreditar em nenhuma crença na totalidade de seus preceitos, acabei por conhecer diversas religiões diferentes e a valorizar seus aspectos mais diversos, não mais como uma afronta ao bom senso, mas apenas como simples características; peculiaridades ínfimas, que talvez representem não o conhecimento cartesiano da verdade sobre Deus, mas apenas e tão somente uma de suas infinitas faces possíveis. Hoje tenho minha própria vida espiritual, independente e segura de si, embora acredite que, por ser algo tão individual, não me cabe expô-la aqui: a crença é minha, e de mais ninguém, não me interessando qualquer rótulo para ela – e é muito provável que nenhum leitor concorde 100% com o que penso, o que também respeito e valorizo.
Bom, se considerarmos a fé como uma justificativa local para os fenômenos desconhecidos, nascidas da soma das experiências individuais repetidas e compartilhadas em um plano comunitário, fica fácil perceber o papel da linguagem oral no decorrer de todo esse processo, pois mesmo quando codificadas em livros, como o caso das religiões hebraicas (judaísmo, cristianismo e islamismo), originalmente os fatos foram sendo contados boca a boca, até alguém ter tempo e conhecimento para passar tudo por escrito. E é justamente sob os escombros da linguagem oral que muitas vezes se escondem as passagens de maior sabedoria dentro das religiões – ocultas sob uma densa camada de poeira que só quando afastadas permitem-nos extrair parte do sumo da sabedoria antiga. Em cada tradição religiosa existente no planeta, o grupo mais velho passou a experiência de sua vida espiritual para os mais novos, que a partir dela criaram seus meios de se portar, de julgar, de se reproduzir e de morrer. Como tal experiência ocorre em um plano íntimo, pessoal, é de se esperar que em cada comunidade surja um modo diferente de sentir a presença dessa força criadora, e que a cada lugar essa força criadora receba um nome diferente.
Embora não seja cristão nem judeu, e isso pouco importe no momento, passei a noite anterior refletindo sobre o trecho da tradição hebraico/cristã que afirma o homem como ‘imagem e semelhança de Deus’. Durante muito tempo, tal passagem fez a massa enxergar na escuridão dessas palavras a imagem de Deus como o velho e barbudo pai de Adão, sentado soberanamente em seu trono nos céus, no papel ao mesmo tempo de déspota, guardião da moral e juiz – considerando como bestiais as religiões que se utilizavam de representações zoomórficas, ou mesmo a teoria de Darwin. Removendo alguns escombros, algumas manipulações (propositais ou não), os antigos possivelmente não acreditassem na semelhança física entre Criador e criatura – mas sim na semelhança interna entre ambos...ou seja, Deus não é semelhante ao homem, mas o homem que é semelhante a seu Deus. Assim, aquele que crê numa Força concentrada no julgamento implacável dos atos de suas criaturas em terra, talvez, em sua imagem e semelhança, torne-se uma pessoa extremamente preocupada com julgamentos, e com a possibilidade de definir um rigoroso padrão moral a ser seguido por todos, para alcançar a salvação, baseado em sua verdade individual, bem como o que crê num Deus vingativo e severo, ou benevolente e ponderado, temeroso e ignorante, terão visões de acordo com cada peculiaridade. Talvez o conhecimento passado pelo trecho seja o de que refletimos em nossos atos a forma como cremos no Deus ao qual nos reportamos, independente de Seu nome, imagens, ou representações.
Essas considerações acabam por tornar o exercício da fé algo ainda maior do que o puro exercício da fé: a forma como cremos é também uma integração entre comunidade, natureza e indivíduo – e por isso mesmo torna-se extremamente discutível, se dentro dos padrões aceitáveis de racionalidade. Quanto maior o conhecimento mútuo, menor a ignorância, a intolerância, o desrespeito – e consequentemente maior será a liberdade de consciência para analisar no que acreditar ou não!
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