quinta-feira, 28 de agosto de 2008

[Conto] O último cometa do século! (versão 2)

Muito prazer! Meu nome é Adamastor e sou o chefe dos ascensoristas de um belo prédio no centro da cidade – cargo que ganhei por merecimento, pois sigo no posto desde os dezenove anos, quando cheguei da Bahia. No que o síndico precisar, sempre estou à disposição, e tenho certo respeito dos outros funcionários justamente por ser o homem de confiança do prédio – qualquer desvio de conduta, de um atraso ao desleixo com o uniforme, eu encaminho ao Seu Gregório, para que tome as devidas providências. Sei que os outros funcionários falam mal de mim pelas costas, por ser muito rigoroso, mas não sei o que seria desse prédio sem mim! Não que ganhe mais que os outros para me comprometer com tais coisas, orçamento de condomínio é curto, sabe como é...mas fico satisfeito pelo respeito que a posição impõe aos outros. Agradeço a Deus todos os dias pelo meu emprego; na minha idade não é fácil arrumar nada melhor, e depois de tanto tempo, a única coisa que me especializei mesmo foi na lida com os elevadores – às vezes o elevador trava e eu consigo abrir a porta antes mesmo do técnico chegar, o que é um grande alívio para quem está preso lá dentro. Olha, nunca tive problema nenhum no emprego, até ontem, mas a culpa não foi minha! A culpa foi toda da Clotilde, da limpeza - uma coroa que é a cara do Zacarias, principalmente quando ri! Vou contar desde o princípio, para que você entenda melhor a história. No final, você me dará razão!

Acordei naquela manhã sonhando com minha ex-mulher, com uma enorme ereção. Não é muito normal acontecer, mas confesso que às vezes sinto falta daquelas carnes – um dia ela tomou um ônibus pro interior, levando minha filha para morar na casa da minha sogra, e nunca mais deu notícias, nem eu procurei. Até hoje não entendi direito o que aconteceu, e não sou homem de correr atrás de mulher. Duro é assistir novela sozinho. Bom, como dizia, acordei animado, e no caminho do ônibus decidi comprar esta luneta pra ver o último cometa deste século – como anunciou no Jornal Nacional. Fazia um calor infernal já pela manhã, e o asfalto soprava um bafo quente. Nenhum sinal de chuva nos próximos dias. Os camelôs espalhavam seus produtos pelas ruas; um carro-forte atrapalhava o trânsito na esquina de baixo, com seguranças armados e escolta da polícia; o funk soava forte no som de um Passat 82, com a lataria podre; buzinas gritavam o berro do recém-nascido esquecido dentro do carro, enquanto o calor cozinhava tudo isso em uma cena do juízo final. O serviço correu normal naquele dia; saí pontualmente, tomei uma cachacinha um pouco mais à frente, e fui até a loja; com o embrulho embaixo do braço achei melhor tentar montar tudo na cobertura do trabalho mesmo. Pegar o ônibus lotado com aquela caixa debaixo do braço seria complicado demais. Custou metade do meu salário, mas queria muito ver de perto o cometa e como o lojista parcelou em dez vezes no cartão de crédito, acabei comprando – por algum motivo estranho, meu crédito no cartão é bem maior que meu próprio salário. Parei pra tomar uma cervejinha antes de voltar pro prédio, só pra fazer uma hora e refrescar o calor.

Pois então! Perto das seis e meia, entrei apressado tentando não chamar a atenção dos outros funcionários, subi, e montei a parafernália por lá, e como ainda estava claro, comecei a olhar as janelas dos prédios em volta. Tudo muito chato, gente chegando nos prédios residenciais, gente se descabelando de trabalhar nos escritórios, e na janela de um dos prédios, um coroa mandando ver na secretária deliciosa – fiquei ali assistindo aquilo tudo, até que o pior aconteceu. A ereção da manhã tinha voltado com toda a força, o bicho latejava, e eu tomei um susto quando senti a Clotilde chegar de surpresa e botar a mão dentro da minha cueca. Essa mulher vive me dando indiretas, mas não tem cristo que agüente: é muito xarope e, além disso, é um dragão! Tentei disfarçar o volume na calça, falei sobre o cometa, sobre a luneta, mas ela já tinha subido decidida – quando percebeu minha ereção não teve dúvidas, me olhou com cara de fêmea no cio, ajoelhou e começou a me chupar. Tá certo que a ereção não era pra ela, e que ela não era a coisa mais atraente do mundo, mas não consegui me controlar e mandei tudo na cara dela, que depois me puxou pro chão com tanta força que eu acabei caindo no chão. Tem coisas que fazem o homem voltar a ser bicho. Só voltei a mim quando ouvi o Seu Gregório gritando nossa demissão para uma platéia de janelas à nossa volta – mandou a gente embora sem pensar duas vezes. Uma vizinha havia ligado indignada para a portaria. Algumas crianças já ensaiavam jogar água fria na gente. Os outros funcionários não paravam de rir de mim – o São Jorge do condomínio. Clotilde, semi nua, se escondia atrás de mim, com aquele corpo de carnes flácidas e sua boca quase invertebrada. Com o que gastei na luneta, poderia ter feito umas quinze visitas às camélias do passeio público – mais novas, com dentes, camisinha, e preservando meu emprego! Do céu ao inferno num piscar de olhos! Pior foi perceber depois que o cometa tinha passado durante aquilo tudo, não sei bem se enquanto comia a Clotilde ou se durante a repercussão do caso – só sei que perdi o cometa e o emprego no mesmo dia, e agora não tenho nem como pagar a luneta. Sou uma pessoa de Deus, mas minha vontade é de matar aquela faxineira dos infernos. Mas voltando ao que eu queria lhe dizer, por isso estou aqui, meu senhor: tem como o senhor receber essa maldita luneta de volta? Sequer foi usada...

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

[Conto] O último cometa do século! (versão 1)

Adamastor era um sujeito meio sedentário, meio alcoólatra, meio obeso, meio coroa. Quase sem amigos, quase sem dinheiro, quase sem sair de casa. Sem mulher, sem rumo e sem objetivos. Com cabelos brancos, com barriga e com uma preguiça indomável. Não que sua auto-estima fosse algo desastroso: era apenas um sujeito adepto de não fazer muitas escolhas, muito menos de tomar decisões mais ousadas. Simplesmente se recusava a escolher, nadava conforme a maré, e tentava não se envolver com as coisas. Acordava cedo e tomava café-com-leite, pão, margarina e mussarela, invariavelmente. Depois saía pontualmente para o trabalho, onde era ascensorista de um velho prédio no centro da cidade desde os dezenove anos. Mantinha-se no cargo por ser sempre o braço direito do síndico, fosse ele quem fosse, delatando qualquer desvio de conduta dos colegas mais displicentes, caso necessário. No almoço, era feijão, arroz, bife e salada, com suco artificial de caju. De noite, ao chegar em casa, repetia o lanche da manhã e ia dormir depois da novela – nunca sem antes esquecer de rezar um rosário completo. Nos sábados se divertia assistindo a um decadente programa humorístico, permitindo-se ir até um pouco mais tarde. Não gostava de praia, nem de mato, nem de sol, nem de frio, nem de esportes, nem de cigarros, drogas ou afins. Quando saía, era sempre com um velho amigo de infância, num bar perto de casa, para tomar uma cervejinha gelada – sempre da mesma marca – e falar do futebol, afinal ninguém é de ferro. A ex-mulher levou a filha para o interior, para morar com os avós, e nunca mais deu notícia – e como ele mal tinha dinheiro para se sustentar, nunca se incomodou com a pensão alimentícia. Tudo muito tranqüilo, incluindo sua vida sexual – uma visita ou outra às caminhantes noturnas do passeio público lhe tiravam a tensão do dia-a-dia. Gostava de prostitutas; eram sinceras, acessíveis, e não lhe exigiam nada que não estivesse realmente disposto a fazer, como enviar flores ou um cartão de aniversário, ou ficar ouvindo sobre como seu dia foi entediante. Sua grande expectativa nos últimos dias era a passagem de um cometa pela terra, o último deste século segundo o apresentador do Jornal Nacional - a única vez que havia visto um, foi em sua infância, no interior da Bahia, a cidade inteira reunida na praça para assistir o fenômeno – agora era uma oportunidade única para reviver aquela experiência. Estava quase decidido a comprar uma luneta que custava metade do seu salário, mas ainda tinha dúvidas.

No serviço tudo continuava da mesma maneira. Adamastor era a autoridade entre os ascensoristas e porteiros do prédio, e motivo de deboche quando não estava entre eles. Além de todos os porteiros e ascensoristas nada simpáticos à sua presença, havia uma mulher disposta a fazer-lhe de graça tudo aquilo que as meretrizes lhe faziam cobrando, a Clotilde, da limpeza, mas a quantidade de palavras inúteis que ela conseguia falar em menos de um minuto faziam as quinze pratas e o amor frio valerem a pena. Clotilde era daquelas pessoas sozinhas e desinteressantes; nunca acrescentava nada, parecia falar com desespero por atenção ou para não se sentir só, e com certeza ficaria no seu pé. Fazia monólogos de vinte minutos sobre as coisas que fazia em casa, sempre sobre tarefas básicas e óbvias, como regar as plantas, fazer café ou a depilação, sem sequer perceber que ninguém estava prestando atenção, fazia uma pausa de dez minutos, e engatava num novo monólogo sobre a consulta médica, um exame, ou uma comida que não lhe caiu bem. Com certeza ficaria no seu pé – e continuaria no seu pé por um bom tempo! Além disso, era gorda e não tinha os dentes da frente e sua risada parecia a do Zacarias; faltar-lhe os dentes tudo bem, a gordura até dá para acostumar, mas rir igual o Zacarias não – ou você consegue imaginar a mulher-Zacarias sendo sensual de alguma forma?! Melhor manter tudo como estava, e assim eram seus dias, dia após dia, café da manhã, almoço e janta; térreo, Clotilde, quinto andar; desce, abre a porta, fecha a porta, sobe; sexta feira, passeio público, prostitutas; vida sem escolhas e sem novidades, deja vu no domingo, tomando cerveja, futebol e pessoas passando pelas calçadas desertificadas pelo sol.

Acordou naquela manhã com uma forte ereção – seria um presságio? Adamastor, já com alguns cabelos brancos, seus quase sessenta anos, e uma já imponente barriga, considerava sua vida sexual normal para um sujeito como ele. Não era rico, nunca foi bonito, não sabia se arrumar, e só entendia de futebol – mesmo assim só na teoria, pois na prática era sempre o último a ser convidado para as peladas dos finais de semana. O fato é que houve uma real empolgação naquele início de dia, talvez por causa da aproximação do cometa, e logo que terminou o expediente, saiu em busca de uma loja para comprar uma luneta e observar melhor o fenômeno celeste. Cachacinha pra tomar coragem, partiu com metade do salário parcelada em dez vezes no cartão e a caixa debaixo do braço, só faltava arrumar um lugar alto para observar o fenômeno. Andar no ônibus lotado com aquela caixa era inviável, melhor arrumar um lugar pela cidade mesmo. Escolheu o terraço do prédio – o porteiro da noite devia uma para ele, e não ia se indispor com o leva-e-trás do síndico. Tomou umas cervejas enquanto a tarde passava, e voltou ao prédio perto das seis e meia, sentindo a sensação refrescante que o álcool dava às gotas de suor que lhe escorriam a testa. Cumprimentou rapidamente alguns funcionários que estavam no saguão, e subiu para a cobertura do prédio, onde ficavam as antenas e a casa de máquina do elevador. Quando o sol terminou de se pôr, começou a testar nas janelas dos prédios à volta, vendo algumas pessoas fazendo cerão após o expediente, outras vendo pornografia no computador, com semblantes sérios, e até uma jovem secretária fazendo um ‘extra’ com o chefe, em cima da mesa. Ficou observando entretido o ato quando foi surpreendido por uma mão acariciando seu pescoço. Clotilde o seguiu até o terraço, curiosa com o que estaria fazendo ali depois do expediente. Explicou impaciente sobre o cometa, a oportunidade única, a luneta, e quando percebeu Clotilde já estava ajoelhada à sua frente, esfregando-lhe as gengivas e uns tocos de dente que ainda lhe sobreviviam na boca. Não soube como lhe dizer não – não sabia dizer não, nunca soube. Foi ali mesmo, melando óculos, cabelo e aquela boca careca que a fazia parecer com o Zacarias. Ela engoliu e o puxou para o chão, determinada, e tudo terminou ali, sem camisinha, sem muita vontade, mas sem muita escolha, com o cometa observando silencioso a cena, enquanto cortava os céus da cidade pela última vez naquele século. A luneta parcelada em dez vezes presenciou sozinha o espetáculo celeste, enquanto Clotilde se sentia amada.

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

[Ensaio] A mente e a liberdade.

Consideremos umas idéias: a capacidade de raciocínio diferencia o homem do animal; perante a lei todos são livres; a racionalidade se desenvolve de maneiras diferentes para cada indivíduo; por isso, cada um exerce à sua própria maneira a liberdade que a lei atesta. Mas e daí? Hegel dispara, sem clemência: “A liberdade é a necessidade compreendida”. Necessidade compreendida? Mas não existia a liberdade? Ou ela é apenas um sofisma demagógico, uma sensação ilusória? No imediatismo latente do século XXI, esquivando-se entre loucura do centro da cidade, entre pessoas tentando vender algo urgentemente, entre pessoas pedindo, entre pessoas indiferentes, resta uma questão chave não só para as humildes manifestações literárias deste blog, mas também para nossa própria sobrevivência enquanto indivíduos: o que significa a liberdade? Ou melhor, como nossa liberdade pode servir para alguma coisa, entre tantas cicatrizes de relações materiais e instantâneas? Quando se fala em liberdade, a primeira imagem que nos vem à mente é a de um negro apanhando acorrentado, igualzinho a professora nos ensinou na escola! Ele está preso, logo não é livre, lógico. A partir de 13 de maio de 1888 todos passaram a ser livres no Brasil, pelas mãos da bondosa princesa – foi o que lhe ensinaram, não foi?! Mas e se a liberdade for algo além de cativeiros, cordas e grilhões? E se existir dentro de nós mesmos um cativeiro onde estejamos apanhando acorrentados?

Óbvio que a liberdade física é um dos principais signos da dignidade. Mas existem correntes que só podem ser rompidas dentro de nós mesmos. O homem é um ser racional justamente por conseguir encontrar soluções indefinidas para seus problemas – diferente de um cachorro, que depois de adestrado passa a responder de forma ainda mais previsível que o normal – seu universo de escolhas são meramente instintivos, dependem de estímulos externos. O cachorro pode sair pela rua, andando aleatoriamente – pode até mesmo ampliar seus horizontes, perambulando por ruas desconhecidas – e depois da jornada ainda pode voltar pra casa, ou continuar na rua; mas nunca decidirá poupar um pouco de sua ração por mês, para angariar fundos e conhecer a Indonésia, nem se interessará mais por cadelas que leiam Dostoievski do que pelas que passem horas se enfeitando no Pet-shop. Até um pouco além disso: Santo Agostinho diferencia Liberdade e Livre-arbítrio, este sendo uma faculdade livre de eleição, independente dos conceitos axiológicos, enquanto a liberdade é o livre-arbítrio usado para construir algo – para o padre filósofo, só somos livres quando buscamos o ‘bem’. Não adianta apenas agir de acordo com a vontade. Hegel sorri mais uma vez, incógnito – “A liberdade é a necessidade compreendida”! Juntando as peças: podemos levar a vida como bois no pasto, ou mesmo como cães vadios; podemos tomar decisões pautadas na nossa própria satisfação, sem muitas considerações externas; ou podemos agir coordenadamente, raciocinando sobre o maior número de hipóteses possíveis (questão de capacidade individual). A escolha, sobretudo enquanto ‘processo’ de escolha – ou melhor: a consciência da escolha. A liberdade não é um status, nem mesmo uma idéia: é um movimento contínuo, autoconstrutivo, onde o indivíduo nunca o é plenamente – apenas ‘vai sendo’, no decorrer de seu exercício. Age livremente. O indivíduo é o processo de sua própria liberdade – e por ser processo, se deixar de exercê-la, volta a pastar! No meio campo, Kierkgaard corre pra linha de fundo e cruza: ninguém quer ser ‘o pior’ possível, apenas o é quando não encontra em sua consciência a resposta que necessita – ao tomar consciência do ‘erro’, reconhecendo-o como tal, o reflexo natural é repará-lo ou ao menos deixar de praticá-lo – evoluir! É a sabedoria popular: “errar é humano, insistir é burrice”! Nascemos pedra bruta, a vida nos dá a erosão, o clima nos influencia, e nós vamos lapidando nossa própria consciência de acordo com as ferramentas que encontramos pelo caminho. Alguns têm as mãos vazias, outros carregam marretas, outros marretas e cinzéis: cada qual com o que conseguiu juntar pelo caminho. É a diferença entre ter filhos aleatoriamente, escolher ter no máximo dois, ou não ter nenhum. É a escolha da profissão, dos amigos, e do banco onde poupar para a aposentadoria. É escolher entre ir à pé, de carro, ou de bicicleta. É escolher entre almoçar salada, um prato refinado, ou o junkie food. É decidir ler algo interessante, preparar um bolo, ou ficar assistindo novela. Enfim, é a escolha – e sua consciência que diga qual é a melhor em cada caso!

“A liberdade é a necessidade compreendida”, exclama mais uma vez o alemão! Sim, é ‘compreendida’, pois é absorvida por um processo racional de escolhas; é ‘necessidade’, pois a vontade é imprescindível no processo de escolha – e só a sua própria consciência poderá lhe indicar o que é ou não necessário! A necessidade sem compreensão é imposta, logo não é livre – e a compreensão sem a necessidade dificilmente alimenta a ‘praxis’ que impulsiona o movimento. O eixo do motor da liberdade está na compreensão – e como motor, precisa de um combustível: a escolha consciente, mais uma vez! Raciocinemos, então! Cada letra, cada vírgula, cada ponto final! Cada gole de cerveja, cada noitada, cada história. É a sua escolha – e só ela – quem lhe dará as ferramentas necessárias para soltar os grilhões que lhe acorrentam o tornozelo ao solo. Cada escolha, consciente ou não, lhe dará uma nova ferramenta e cabe a você aproveitá-la ou não. Pense, aceite, altere, negue ou recuse, mas escolha. Escolha antes que alguém escolha por você. A coletividade é a Esfinge, de prontidão, enigmática: “decifra-me, ou te devoro”. Seja livre, conheça-se, pense e exista! Enfim, liberte-se!

terça-feira, 5 de agosto de 2008

[Conto] O Átrio e o Ventrículo.

Meu nome é Benedito, tenho trinta e um anos, estou limpo há três dias, e não sei até quando conseguirei me manter assim. Não tenho muita experiência em falar em público, e não sei ao certo o motivo de compartilhar essa história assim, com todos vocês, mas algo me impulsiona, e sei que me sentirei melhor após o relato. Quero falar não sobre o amor da baixa literatura, das canções populares, nem um amor de novela, pasteurizado e sem maiores impactos na existência do indivíduo. Para mim, é plenamente possível amar várias mulheres ao mesmo tempo – sem um sentido de libidinagem, como pode parecer à primeira vista, mas um amor verdadeiro, sincero e entregue para várias pessoas ao mesmo tempo – e isto tem confundido um pouco as pessoas com quem me relaciono, causando-me algumas angústias nos últimos meses. Vou contar minha história, e espero não ser julgado sumariamente por isso, pois tudo o que fiz foram escolhas baseadas nos meus desejos conscientes, na minha liberdade e nas responsabilidades inerentes.

Primeiro conheci Manoela numa tarde ensolarada de outono – eu de ressaca, andando no parque, ela sentada na grama, lendo Veríssimo. Morena de olhos claros, lábios finos, e um olhar com um pinguinho de timidez. Mexeu mesmo com meu coração. Trocamos olhares na primeira volta, e na segunda sentei ao seu lado. Conversarmos demoradamente sobre assuntos diversos, cães, viagens, filhos, horóscopo, vinil, livros, hinduísmo, e bares onde ouvir MPB. Peguei o telefone, e combinamos de ver um show de bossa nova na quarta seguinte – tudo muito próximo, mas ao mesmo tempo mantendo uma respeitosa distância. Fui pra casa com um sorriso de ‘conquistador barato doido pra se enrolar’ na boca, tomei um banho, fumei um, e me mandei pro inferninho de costume, para tomar uma gelada e observar o movimento. Ainda pensava bastante em Manoela, com seu jeitinho de mulher para casar. Cerveja vai, cerveja vem, conversas cruzadas, e de algum lugar surge na minha frente Márcia, amiga da amiga de uma amiga, que era de Sampa, mas morava aqui há cinco meses. Falava sobre Heidegger sem ser muito clara no que tentava de dizer, como quem pisa devagar, medindo o terreno, até ter certeza de que ninguém a sua volta sabe mais sobre o assunto do que ela própria. Gesticulava de uma forma divertida, falava com as mãos, e de quinze em quinze minutos ia ao banheiro com uma das amigas. Atração imediata, sexo intenso, e a imagem marcante de acordar todo arranhado, com ela batendo as portas da cozinha do meu apartamento, preparando o café da manhã, aquelas pernas finas, cobertas apenas por uma camisa minha que ela vestiu como se fosse pijama. Da mesma forma como surgiu, desapareceu no dia seguinte, sem deixar sinais. Passei o início da semana sóbrio, tomando apenas umas cervejas em casa, até que na quarta feira de tarde liguei para Manoela, para irmos ao show. Combinamos, passei na casa dela, e fomos ao teatro. Ótimo show, embora meio paradão, e no final me pediu para deixá-la em casa cedo, pois precisava resolver alguns problemas de trabalho no dia seguinte. Tradicionais malhos na frente da casa dos pais dela, e voltei pra casa com os ovos doendo, alucinado por seus suspiros no meu ouvido a cada investida nos atritos entre nossas calças jeans, e uma frase na cabeça “Não, não, estamos indo rápido demais!”. Não rolou nada além, mas mexeu ainda mais com meus desejos, tanto que não agüentei a ansiedade e liguei para ela de volta na sexta, para completarmos nossa programação. Saímos, tomamos um vinho, e fomos para o meu apartamento. Manoela tinha um sexo úmido, lento e ofegante, que durou até às quatro da manhã, quando me pediu para levá-la de volta para casa. Estava decidido a passar um tempo com Manoela, sossegado como um bom homem apaixonado e tudo ia correndo tranquilamente, até que dois dias depois Márcia surgiu novamente, tão inesperada quanto da vez passada, e de tantas outras vezes que surgiria em minha vida, como um raio, ou melhor, consumindo dos raios a energia com que se impunha na cama. Estava apaixonado por Manoela, mas o sexo intenso e vigoroso de Márcia me prendia de uma forma que acabei alimentando um relacionamento com as duas, uma como namorada dos sonhos e candidata a futura mãe de meus filhos, regrada e responsável, outra como amante dos sonhos, selvagem, hiperativa e inconseqüente. Foi assim que minha vida começou a seguir um rumo que até então eu sequer imaginaria.

Durante o primeiro mês, tudo se manteve na normalidade, namorada de um lado, amante do outro, cada uma me confortando à sua maneira. Mas por volta do início do segundo mês nesse ritmo de alternâncias, eu mesmo não consegui mais diferenciar entre uma e outra, e passei a esperar uma conduta mais independente de uma, e mais carinhosa da outra. Não estava mais satisfeito com o que nenhuma apresentava. Embora a moral cristã não me afete como minha mãe gostaria, manter uma vida dupla e secreta não é das tarefas mais fáceis, e para um amador como eu o sentimento por ambas foi se misturando, a forma de atenção que julgava necessária a cada uma foi se convertendo, e a existência de ambas em minha vida me deu provas de que num relacionamento nem sempre os resultados dependem de nossas intenções, por mais ambígua que a relação possa ser. O sexo lento e úmido de Manoela havia se tornado mais intenso, cativante, e a cada dia me dava mais prazer, enquanto seu jeito extremamente sentimental estava saturando minha paciência com detalhes pequenos e minando todo o encanto existente; Manoela, de uma hora pra outra, tornara-se a representação do puro prazer sexual. Por outro lado, a forma insana como Márcia buscava o sexo e alguns antidepressivos não prescritos imprimiam-lhe um aspecto frágil, tudo não passando de uma encenação ávida para preencher seu interior com algo que lhe faltava, e essa carência mexia com meus sentimentos – uma mulher depressiva não pode parar! Passei a sentir um tesão incontrolável pela mulher que até então via como a possível mãe de meus filhos, e um carinho terno pela mulher que no princípio era para representar somente a satisfação dos prazeres da carne – de forma que, mais uma vez, não conseguia abrir mão de estar com nenhuma das duas, por desejar ambas, cada uma à sua maneira. Sinto que meus colegas de trabalho perceberam a mudança no meu comportamento, de alguma maneira, mas não abri espaço para que viessem conversar comigo – apesar de chegar ao trabalho visivelmente abatido, desinteressado, e com a barba para fazer. Não que alguma delas quisesse que a relação mudasse da forma como estava acontecendo; obviamente Manoela desejava aumentar a volúpia de nosso sexo, mas também desejava manter-se no papel de namorada, que ela julgava ser única, enquanto Márcia havia construído uma barreira ao redor de seus sentimentos, tornando muito mais fácil o sexo com alguém que não estivesse interessado neles. Márcia insistia em aparecer e sumir no meio de minhas noites, como uma gata no cio, e quando consegui começar a entrar no emaranhado complexo de seu lado emocional, o sexo passou a não render mais da mesma forma. Márcia se sentia perseguida, Manoela se sentia abandonada. Márcia queria liberdade, Manoela queria ser cada vez mais presa. E eu, no meio desse turbilhão de transformações, cercado pelas reações hormonais de cada uma delas, não conseguia me decidir por nenhuma das duas, buscando em cada uma exatamente tudo o que, no princípio, me fascinava justamente na outra.

Na metade do terceiro mês, Márcia foi internada, e descontando umas visitas supervisionadas à clínica, nos horários permitidos, minha relação com Manoela tornou-se mais próxima, ao ponto de ser apresentado aos seus pais, com direito a jantar e tudo – uma solenidade para a qual eu não estava preparado, mas tinha encarado com extremo carinho. Após dois meses de relacionamento com Manoela sem ter nada com Márcia a não ser nossos papos melancólicos nos horários de visita, creio que vocês já consigam imaginar para que lado tudo estivesse indo: as coisas haviam voltado ao normal, Manoela no papel de namorada única, exclusiva e futura mãe de meus filhos, e Márcia apenas como uma lembrança libidinosa de momentos de loucura. De fato, a relação havia se fortalecido, e já pensávamos inclusive em juntar nossas coisas em breve. Até minha relação no trabalho voltou ao normal, e eu voltava a chegar no horário – tudo mais ou menos nos trilhos de volta. Mais ou menos...no dia que Márcia saiu da clínica, lá estava eu, com um buquê de flores esperando na porta, pronto para dar um fim à nossa quase-relação. Juro pra vocês que quase aconteceu isso, mas na verdade fomos para o meu apartamento, e tudo correu de uma forma suave, leve e apaixonada como nunca havia acontecido antes, e Márcia quase me causa um infarto ao dizer baixinho no meu ouvido um ‘eu te amo’ que fez estremecer todas as minhas verdades. Dormi um sono pesado, ao lado de seu corpo encaixado ao meu de uma forma como nunca antes havia acontecido, acomodado na maciez de suas pernas finas. Isso aconteceu há cinco dias atrás. No dia seguinte, lá fui eu até a casa de Manoela, decidido a terminar o relacionamento. Estava realmente decidido, pois já pressentia que alguém sairia muito machucado dessa história, e essa vida dupla não podia mais persistir. Manoela me recebeu com um beijo totalmente desencorajador para o fim de um relacionamento – minhas pernas simplesmente travaram. Ela tinha uma novidade incrível pra contar, provavelmente sobre a entrevista de emprego do dia anterior, ou algo assim, e por isso achei melhor ouvir tudo antes de terminar o relacionamento, mas ela me deu a notícia como quem joga um tijolo no meu colo: está grávida! A mulher que eu conheci a uns seis meses atrás como possível candidata a mãe de meus filhos tinha sido efetivamente eleita, e agora eu não tinha mais como voltar atrás. Apenas sorri um sorriso mudo, abracei-a, e voltei pra casa dizendo que precisava assimilar melhor a idéia. Voltei pela rua com passos incertos, comprei duas garrafas de tequila, mais alguns itens de necessidade e me tranquei no apartamento. O pessoal do trabalho me ligou diversas vezes, mas não fui capaz de atender o celular e desliguei. Durante meus sonhos, Márcia e Manoela giravam em torno de mim, envolvidas em cores psicodélicas, rindo, descalças, vestidas com o mesmo vestido branco e com os cabelos molhados, girando cada vez mais rápido, até se tornarem a mesma pessoa – quando acordei desse sonho, resolvi procurar vocês. Como já sabem, me chamo Benedito, tenho trinta e um anos, e estou sóbrio há três dias, mas não sei mais quanto tempo vou agüentar.