terça-feira, 2 de dezembro de 2008

[Conto] Vazio.

Vazio. Era assim que o espaço-tempo ao redor de Cristina ungiam o apartamento de quarto e sala na esquina mais movimentada da cidade com um sentimento melancólico e obscuro, de origem desconhecida. No rádio, um solo de trompete se contorcia denso entre a sala e a cozinha, agonizando solitário ante um tímido acompanhamento de piano minimalista. Olhou para a conjunção descontínua entre carros e sinais de trânsito efervescendo pelas paredes externas do prédio, embebidos pela chuva e abafados pelas janelas fechadas, enquanto buscava dentro de si um pouco de disposição para preparar o café da tarde. Os guarda-chuvas se encarregavam de um movimento lúdico e inconstante, cobrindo as calçadas com seu luto inanimado. Na cabeceira da cama ainda havia mais três comprimidos de Diazepam, os últimos, guardados como tesouro para enfrentar mais uma tenebrosa noite de domingo, e esperar incógnita a manhã de segunda-feira. Costumava dizer que a culpa de sua solidão era a obesidade e a mecha de cabelo branco que lhe tomava a têmpora, impondo-lhe um ar dracúleo. Cristina era dessas mulheres apaixonadas que nunca estão amando a ninguém, muito mais por conta do pessimismo que lhe é inato do que pela falta de atributos físicos; o negativismo apaga qualquer possibilidade de beleza palpável num corpo pálido, inerte e esquecido. Pediu licença médica da repartição para tratar de uma depressão aguda, e desde então só saia de casa para comprar comida, religiosamente no mesmo horário, todos os dias; mas desta vez, comprou um litro de vodka no lugar do macarrão. Um copo fundo, um cigarro, Bitches Brew passeando por diversas escalas, e o segundo copo fundo fez com que Cristina esquecesse o gás aberto, enquanto procurava algo interessante na televisão num dia chuvoso de domingo – não sem antes vedar a porta com uma toalha de banho molhada.

21 comentários:

Fátima disse...

já ia dizer que o texto falava de mim... mas como não recordo a última vez que tentei o suicidio, a carapuça não me serviu muito... haha

***

Brincadeiras de lado, ótimo texto. São tantas as mulheres tristes por aí, e olha que tornam-se assim por ironia do destino mesmo.

(ou por escolha infelizes)

beijos

Gustavo Martins disse...

Vamos lá, Fidel.

Ak 47 mesmo. Butando tudo pra baixo.

E podescrer que fora alguns entendidos (excluídos nosostros) vc deve ter desencadeado uma grande seqüencia de buscas por Bitches Brew no google!

Boooom!

Gustavo Martins disse...

Porra, cara. Esse Bitcher Brew é uma quebradeira!!! Parece trilha de filme do velho Hitch

Milena Palladino disse...

O mundo tá cheio dessas mulheres apaixonadas que não amam a ninguém. Eu mesma, já fui por tantas vezes assim...

Anônimo disse...

Conheço uma pessoa que temo que enverede por este caminho... e, na boa? Não tenho muita pena não... sabe por que? Procurou isolamento, nada basta, ninguém basta, ninguém é bom o suficiente pra estar ao seu lado. Então?

Marcia Paula disse...

Depressão acaba mesmo com as mulheres,inclusive as beldades,que não escapam desse sentimento de se sentirem as últimas.Dizem que será a grande doença do novo século,é uma pena.Belo conto,como sempre,beijos!

Gabi disse...

preciso tomar cuidado com a reclusão

Fátima disse...

ai! resposta ácida.

e uma coisa: "ou talvez a insistência seja só uma forma desesperada de consumar algo que não existe..."

é provável hein...

Flávia disse...

Penso que toda mulher, em algum momento da vida, em maior ou menor grau, já foi meio Cristina.

Ruim é perpetuar esse momento.

Beijos!

Lucí disse...

Fiqui triste por ela..

*tu me lembra Clarice Lispector...*..

Bjooo

Verbo Feminino disse...

Nossa, rapaz!

O que me chamou aqui? O nome do blog, claro: macumba forte.

A foto, belíssima, lá em cima, e o fundo negro, claro.

A cristina, claro.

E a mulherada aqui nos comments!

A macumba deve ser forte mesmo! rsrs

Um abraço, volto mais, claro!

Fátima disse...

ela sempre quer que ele insista mais.
Porém, neste caso em específico não havia mais nada que ele pudesse dizer a ela que a convencesse...

Ficou bom o visual novo, né? Ainda não acostumei... mas gostei, ainda mais com Charlotte linda lá... hahaha

Fátima disse...

hahahaha

Dani, não aconteceu nada com a Charlotte. É a mesma! hahaha

e sobre o jogo, ela não entregou coisa nenhuma! Fique o sr. sabendo que ela não é do tipo que entrega o jogo. Na verdade, o adversário foi astucioso e conseguiu ganhar a dama... hahaha.

p.s: está me devendo uma garrada de merlot!

menina fê disse...

o ar de imprevisibilidade somado ao "sabemos o que vai acontecer" é fantástico. um noir de mestre.




aliás, vc tem o dom mesmo!
bj grande da fê =D

Eliana Mara Chiossi disse...

Visitando via Luciana G.


Boa noite!

Gostei do texto!

Marcella Castro disse...

Conheco pessoas quase assim, que são tão pessimistas ao ponto de aproveitar as coisas da vida e cair numa depressão! Agora 'suicidio' é mals heim!
Beijos!

Alessandra Castro disse...

As vezes enfiar o pé na jaca parecer ser mesmo a única opção.

menina fê disse...

oi, dani!
tem presente pra ti [post 12/12], vem buscar!

peço que mude o link para degusta!, não será mais degustação íntima. tá?! brigadão!

ótimo fds.
bj da fê =D

Eduardo Martins disse...

Despede-se da vida como a viveu, displicentemente. A sutileza de como foi escrito nem parece um suicídio. Parace até coisa feita... Parabéns por esse feito!
Axé

Milena Palladino disse...

Já gosto desses contos, viu moço?!

Eduardo Martins disse...

O subúrbio é minha "praia". Fico feliz em ver um carioca em outras (um)bandas. Santa Catarina. Já tinha ouvido falar desse livro, mas o que tenho em mão é: O negro no Rio de Janeiro e sua tradição musical (partido-alto, calango, chula e outras cantorias) do mesmo autor. Sou de Marechal perto Bento Ribeiro, Oswaldo Cruz, Madureira...
Axé