sexta-feira, 7 de novembro de 2008

[Conto] Apenas mais um verão escaldante.

Mais um dezembro escaldante como outro qualquer; a rádio comunitária gritando um funk estridente, o som metálico das peças do fuzil se encaixando e a gota de suor escorrendo pela minha testa fazem parecer que o tempo parou por alguns instantes, para dar a todos mais alguns segundos de vida. Montei e desmontei a Kalashnikov três vezes, enquanto o exército se prepara para subir – dá pra sentir daqui de cima o cheiro do medo. As pipas já não estão mais no céu, as pessoas já trancaram suas casas. A polícia alegou não ter condições de subir o morro, e o exército brasileiro entrou na jogada como última solução para o caos urbano. Irônico, né?! – mais fácil convencer um moleque de dezoito anos a cumprir o dever, do que um pai de família; mas não é disso que eu quero falar: quando as armas dispararem os primeiros tiros, será apenas o velho instinto de sobrevivência primata cuspindo projéteis a setecentos metros por segundo na direção do inimigo; sem sociologia, Estado, ou religião para intervir. Depois de morto deve ser mais fácil olhar para a própria vida e encontrar nossos erros, mas não estou aqui para chorar minhas misérias, nem para compreender o que o destino me aprontou – sobrevivo no tráfico desde os treze anos, sem nenhum ferimento de combate, e rezo todos os dias para continuar vivo, ou morrer rápido, só isso; e talvez por isso mesmo incomode tanto o secretário de segurança pública: atualmente, sou o cara que está a mais tempo no comando de uma boca de fumo em todo o estado do Rio de Janeiro – e por isso mesmo chegou a minha vez de pagar o preço da fama, os jornais precisam dar alguma satisfação para o pão e circo nosso de cada dia, e vou fazer o possível para que minha vez não seja hoje. Simplesmente fingem não saber que matando um cara como eu, surgirão outros vinte querendo ocupar a vaga, mas prefiro não dizer o que penso sobre isso tudo – o que importa agora é sobreviver, e não contemporizar com o inimigo. Eles já estão posicionados, faltam alguns segundos incólumes para a primeira armar disparar, e alguns minutos insanos entre o primeiro tiro e o caos. Coloquei os fones de ouvido, a trilha sonora do Pulp Fiction me inspira – seria bom ser bandido como o John Travolta, e no próximo filme interpretar um cara comum, mas aqui é a Babilônia, não Hollywood. As carreiras do pó branco me deixam concentrado em continuar vivo por mais um dia, enquanto Miserlou fica repetindo no MP3 catarticamente a todo volume, e minhas pupilas dilatam. Faço o sinal da cruz, pedindo para que o sangue espalhado pelo chão não seja o meu, beijo o retrato do meu filho; minhas guias me protegem, e seiscentos tiros por minuto abrem as portas entre o céu e o inferno, enquanto o helicóptero da Globo registra tudo à distância segura. É apenas mais um dezembro escaldante, que em algumas horas você verá na TV.

15 comentários:

Anônimo disse...

Apenas mais um, e mais outro, e mais outro... essa é a história de um, depois de outro, e de outro. É o Rio do qual se procura fugir, ignorando, fingindo.

Flávia disse...

Tristemente real.

Vc tá virando meu contista preferido :)

Beijoca, Dan.

Gabi disse...

Muito bom.
Mesmo.
To sem palavras uma sensação tensa que prende a história.

parabéns.

Fátima disse...

entendi porque perguntou da trilha do Pulp Fiction ontem... hehe

é o cotidiano seco e amargo com cheiro de pólvora aí, nas nossas caras. E não é só porque a Globo mostra não, é porque milhares pessoas vivem isso realmente.

Sensacional o conto! Parabéns.

***

Bom Dani, e sobre os rótulos, não acho que a protagonista queira complicar mais do que já é complicado, mas todo ser humano tem uma necessidade enorme de denominar aquilo que sente ou está passando. O caso dela não é diferente, apesar de ao fim da crônica ela dar-se conta de que isso não tinha nome, era apenas uma condição.

beijos

Mariana disse...

Um bom domingo pra vc.
Beijo

Alessandra Castro disse...

O pior é que todo mundo conhece alguem assim.

Marcia Paula disse...

É um conto escaldante.Senti os tiros daqui.Beijos.

Gustavo Martins disse...

Forte fidel. E deixa darmos um recado aqui: MARY WEST, se conhece apresenta pra gente, que sai bem mais barato, viu?

Adrielly Soares disse...

Caraca. Você escreve muito bem. E meu, muita coincidencia eu estava ouvindo uma música do filme também mas não era Misirlou é : GIRL, YOU'LL BE A WOMAN SOON (Urge Overkill)

hhaha bem mais depre.
um beijo.

Unknown disse...

QUANTO AO COMENTÁRIO QUE VOCÊ DEIXOU LÁ NO ANOTHER THOUGHTS:

Acho que fui bem clara que as mulheres têm grande parte da culpa dos homens estarem agindo de forma tão banal com as mulheres.

E acho que ficou igualmente claro que quando eu digo que os homens "FAST FOOD" são piores que os "HIPÒCRITAS" foi com base no outro post que eu fiz. Neste, coloco o Homem Hipócrita como um cara que tem medo de perder o controle, por isso dissimula o que sente. Dessa forma ele não é pior que o HOMEM FAST FOOD que tem o prazer de mostrar que só quer "pegar sem se apegar".

Também creio ter sido clara ao dizer que só existem HOMENS FAST FOOD pq existem MULHERES SANDUICHES, e essas se passam pra ser lanchinho de fim de tarde por uma transa. E isso não é ser "bem resolvida", isso é macular o sexo feminino é não se valorizar.

Bem,... Eh essa a minha opinião.

; ) Valeu pela a visita, volte sempre!!

menina fê disse...

e pensar que esses caras têm sentimento... têm alma! mas têm fome e não têm uma política humanitária que dê oportunidades.



é só mais um, que será o milésimo, o milésimo primeiro, o milésimo segundo, o milésimo terceiro, ...



adoro te "ouvir".
bjão da fê =D

Unknown disse...

Coisarada!...enquanto isso, o Counter Strike....


Se liga na parada: http://www.youtube.com/watch?v=op4byt-DtsI
abrx

Fátima disse...

este é o problema de ir esquecendo as pessoas que amamos de verdade...

Daniella K. disse...

A coisa tá caminhando pra produção em série. Morre um desses, tem mais dez na fila prontinhos para ocupar o lugar.

Anônimo disse...

Tudo está concorrido nessa vida, ainda mais quando se trata do maior pólo empregatício destinado aos jovens de comunidade de risco que é o tráfico. Tudo está concorrido nessa vida, ainda mais quando se trata das transmissões sensacionalistas da "guerra civil urbana" em prol do ibope e anunciantes. "Homens primatas do Capitalismo Selvagem" E agora? "Rezo todos os dias para continuar vivo, ou morrer rápido" Rezo para sobreviver.