No serviço tudo continuava da mesma maneira. Adamastor era a autoridade entre os ascensoristas e porteiros do prédio, e motivo de deboche quando não estava entre eles. Além de todos os porteiros e ascensoristas nada simpáticos à sua presença, havia uma mulher disposta a fazer-lhe de graça tudo aquilo que as meretrizes lhe faziam cobrando, a Clotilde, da limpeza, mas a quantidade de palavras inúteis que ela conseguia falar em menos de um minuto faziam as quinze pratas e o amor frio valerem a pena. Clotilde era daquelas pessoas sozinhas e desinteressantes; nunca acrescentava nada, parecia falar com desespero por atenção ou para não se sentir só, e com certeza ficaria no seu pé. Fazia monólogos de vinte minutos sobre as coisas que fazia em casa, sempre sobre tarefas básicas e óbvias, como regar as plantas, fazer café ou a depilação, sem sequer perceber que ninguém estava prestando atenção, fazia uma pausa de dez minutos, e engatava num novo monólogo sobre a consulta médica, um exame, ou uma comida que não lhe caiu bem. Com certeza ficaria no seu pé – e continuaria no seu pé por um bom tempo! Além disso, era gorda e não tinha os dentes da frente e sua risada parecia a do Zacarias; faltar-lhe os dentes tudo bem, a gordura até dá para acostumar, mas rir igual o Zacarias não – ou você consegue imaginar a mulher-Zacarias sendo sensual de alguma forma?! Melhor manter tudo como estava, e assim eram seus dias, dia após dia, café da manhã, almoço e janta; térreo, Clotilde, quinto andar; desce, abre a porta, fecha a porta, sobe; sexta feira, passeio público, prostitutas; vida sem escolhas e sem novidades, deja vu no domingo, tomando cerveja, futebol e pessoas passando pelas calçadas desertificadas pelo sol.
Acordou naquela manhã com uma forte ereção – seria um presságio? Adamastor, já com alguns cabelos brancos, seus quase sessenta anos, e uma já imponente barriga, considerava sua vida sexual normal para um sujeito como ele. Não era rico, nunca foi bonito, não sabia se arrumar, e só entendia de futebol – mesmo assim só na teoria, pois na prática era sempre o último a ser convidado para as peladas dos finais de semana. O fato é que houve uma real empolgação naquele início de dia, talvez por causa da aproximação do cometa, e logo que terminou o expediente, saiu em busca de uma loja para comprar uma luneta e observar melhor o fenômeno celeste. Cachacinha pra tomar coragem, partiu com metade do salário parcelada em dez vezes no cartão e a caixa debaixo do braço, só faltava arrumar um lugar alto para observar o fenômeno. Andar no ônibus lotado com aquela caixa era inviável, melhor arrumar um lugar pela cidade mesmo. Escolheu o terraço do prédio – o porteiro da noite devia uma para ele, e não ia se indispor com o leva-e-trás do síndico. Tomou umas cervejas enquanto a tarde passava, e voltou ao prédio perto das seis e meia, sentindo a sensação refrescante que o álcool dava às gotas de suor que lhe escorriam a testa. Cumprimentou rapidamente alguns funcionários que estavam no saguão, e subiu para a cobertura do prédio, onde ficavam as antenas e a casa de máquina do elevador. Quando o sol terminou de se pôr, começou a testar nas janelas dos prédios à volta, vendo algumas pessoas fazendo cerão após o expediente, outras vendo pornografia no computador, com semblantes sérios, e até uma jovem secretária fazendo um ‘extra’ com o chefe, em cima da mesa. Ficou observando entretido o ato quando foi surpreendido por uma mão acariciando seu pescoço. Clotilde o seguiu até o terraço, curiosa com o que estaria fazendo ali depois do expediente. Explicou impaciente sobre o cometa, a oportunidade única, a luneta, e quando percebeu Clotilde já estava ajoelhada à sua frente, esfregando-lhe as gengivas e uns tocos de dente que ainda lhe sobreviviam na boca. Não soube como lhe dizer não – não sabia dizer não, nunca soube. Foi ali mesmo, melando óculos, cabelo e aquela boca careca que a fazia parecer com o Zacarias. Ela engoliu e o puxou para o chão, determinada, e tudo terminou ali, sem camisinha, sem muita vontade, mas sem muita escolha, com o cometa observando silencioso a cena, enquanto cortava os céus da cidade pela última vez naquele século. A luneta parcelada em dez vezes presenciou sozinha o espetáculo celeste, enquanto Clotilde se sentia amada.
2 comentários:
Incrível a conexão deste texto com o ensaio sobre a mente e a liberdade. A luneta parece ter sido a grande escolha da sua vida e, ainda assim, não conseguiu usufruir desta com o propósito que desejava. Por estar tão "acostumado" a uma vida de escolhas sem raciocínio, se deixou levar mais uma vez.
Meu Dellls
E clotilde se sentiu amada!!
Eu estava quase optando pela versão 2, mas esse final mudou tudo. A luneta tão cara pra ele "vendo" o cometa sozinho e a coitada da mulher zacaria se sentindo amada (?!). Consigo imaginar a cara dele depois do ato, olhando pra luneta...
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