segunda-feira, 25 de agosto de 2008

[Conto] O último cometa do século! (versão 1)

Adamastor era um sujeito meio sedentário, meio alcoólatra, meio obeso, meio coroa. Quase sem amigos, quase sem dinheiro, quase sem sair de casa. Sem mulher, sem rumo e sem objetivos. Com cabelos brancos, com barriga e com uma preguiça indomável. Não que sua auto-estima fosse algo desastroso: era apenas um sujeito adepto de não fazer muitas escolhas, muito menos de tomar decisões mais ousadas. Simplesmente se recusava a escolher, nadava conforme a maré, e tentava não se envolver com as coisas. Acordava cedo e tomava café-com-leite, pão, margarina e mussarela, invariavelmente. Depois saía pontualmente para o trabalho, onde era ascensorista de um velho prédio no centro da cidade desde os dezenove anos. Mantinha-se no cargo por ser sempre o braço direito do síndico, fosse ele quem fosse, delatando qualquer desvio de conduta dos colegas mais displicentes, caso necessário. No almoço, era feijão, arroz, bife e salada, com suco artificial de caju. De noite, ao chegar em casa, repetia o lanche da manhã e ia dormir depois da novela – nunca sem antes esquecer de rezar um rosário completo. Nos sábados se divertia assistindo a um decadente programa humorístico, permitindo-se ir até um pouco mais tarde. Não gostava de praia, nem de mato, nem de sol, nem de frio, nem de esportes, nem de cigarros, drogas ou afins. Quando saía, era sempre com um velho amigo de infância, num bar perto de casa, para tomar uma cervejinha gelada – sempre da mesma marca – e falar do futebol, afinal ninguém é de ferro. A ex-mulher levou a filha para o interior, para morar com os avós, e nunca mais deu notícia – e como ele mal tinha dinheiro para se sustentar, nunca se incomodou com a pensão alimentícia. Tudo muito tranqüilo, incluindo sua vida sexual – uma visita ou outra às caminhantes noturnas do passeio público lhe tiravam a tensão do dia-a-dia. Gostava de prostitutas; eram sinceras, acessíveis, e não lhe exigiam nada que não estivesse realmente disposto a fazer, como enviar flores ou um cartão de aniversário, ou ficar ouvindo sobre como seu dia foi entediante. Sua grande expectativa nos últimos dias era a passagem de um cometa pela terra, o último deste século segundo o apresentador do Jornal Nacional - a única vez que havia visto um, foi em sua infância, no interior da Bahia, a cidade inteira reunida na praça para assistir o fenômeno – agora era uma oportunidade única para reviver aquela experiência. Estava quase decidido a comprar uma luneta que custava metade do seu salário, mas ainda tinha dúvidas.

No serviço tudo continuava da mesma maneira. Adamastor era a autoridade entre os ascensoristas e porteiros do prédio, e motivo de deboche quando não estava entre eles. Além de todos os porteiros e ascensoristas nada simpáticos à sua presença, havia uma mulher disposta a fazer-lhe de graça tudo aquilo que as meretrizes lhe faziam cobrando, a Clotilde, da limpeza, mas a quantidade de palavras inúteis que ela conseguia falar em menos de um minuto faziam as quinze pratas e o amor frio valerem a pena. Clotilde era daquelas pessoas sozinhas e desinteressantes; nunca acrescentava nada, parecia falar com desespero por atenção ou para não se sentir só, e com certeza ficaria no seu pé. Fazia monólogos de vinte minutos sobre as coisas que fazia em casa, sempre sobre tarefas básicas e óbvias, como regar as plantas, fazer café ou a depilação, sem sequer perceber que ninguém estava prestando atenção, fazia uma pausa de dez minutos, e engatava num novo monólogo sobre a consulta médica, um exame, ou uma comida que não lhe caiu bem. Com certeza ficaria no seu pé – e continuaria no seu pé por um bom tempo! Além disso, era gorda e não tinha os dentes da frente e sua risada parecia a do Zacarias; faltar-lhe os dentes tudo bem, a gordura até dá para acostumar, mas rir igual o Zacarias não – ou você consegue imaginar a mulher-Zacarias sendo sensual de alguma forma?! Melhor manter tudo como estava, e assim eram seus dias, dia após dia, café da manhã, almoço e janta; térreo, Clotilde, quinto andar; desce, abre a porta, fecha a porta, sobe; sexta feira, passeio público, prostitutas; vida sem escolhas e sem novidades, deja vu no domingo, tomando cerveja, futebol e pessoas passando pelas calçadas desertificadas pelo sol.

Acordou naquela manhã com uma forte ereção – seria um presságio? Adamastor, já com alguns cabelos brancos, seus quase sessenta anos, e uma já imponente barriga, considerava sua vida sexual normal para um sujeito como ele. Não era rico, nunca foi bonito, não sabia se arrumar, e só entendia de futebol – mesmo assim só na teoria, pois na prática era sempre o último a ser convidado para as peladas dos finais de semana. O fato é que houve uma real empolgação naquele início de dia, talvez por causa da aproximação do cometa, e logo que terminou o expediente, saiu em busca de uma loja para comprar uma luneta e observar melhor o fenômeno celeste. Cachacinha pra tomar coragem, partiu com metade do salário parcelada em dez vezes no cartão e a caixa debaixo do braço, só faltava arrumar um lugar alto para observar o fenômeno. Andar no ônibus lotado com aquela caixa era inviável, melhor arrumar um lugar pela cidade mesmo. Escolheu o terraço do prédio – o porteiro da noite devia uma para ele, e não ia se indispor com o leva-e-trás do síndico. Tomou umas cervejas enquanto a tarde passava, e voltou ao prédio perto das seis e meia, sentindo a sensação refrescante que o álcool dava às gotas de suor que lhe escorriam a testa. Cumprimentou rapidamente alguns funcionários que estavam no saguão, e subiu para a cobertura do prédio, onde ficavam as antenas e a casa de máquina do elevador. Quando o sol terminou de se pôr, começou a testar nas janelas dos prédios à volta, vendo algumas pessoas fazendo cerão após o expediente, outras vendo pornografia no computador, com semblantes sérios, e até uma jovem secretária fazendo um ‘extra’ com o chefe, em cima da mesa. Ficou observando entretido o ato quando foi surpreendido por uma mão acariciando seu pescoço. Clotilde o seguiu até o terraço, curiosa com o que estaria fazendo ali depois do expediente. Explicou impaciente sobre o cometa, a oportunidade única, a luneta, e quando percebeu Clotilde já estava ajoelhada à sua frente, esfregando-lhe as gengivas e uns tocos de dente que ainda lhe sobreviviam na boca. Não soube como lhe dizer não – não sabia dizer não, nunca soube. Foi ali mesmo, melando óculos, cabelo e aquela boca careca que a fazia parecer com o Zacarias. Ela engoliu e o puxou para o chão, determinada, e tudo terminou ali, sem camisinha, sem muita vontade, mas sem muita escolha, com o cometa observando silencioso a cena, enquanto cortava os céus da cidade pela última vez naquele século. A luneta parcelada em dez vezes presenciou sozinha o espetáculo celeste, enquanto Clotilde se sentia amada.

2 comentários:

Anônimo disse...

Incrível a conexão deste texto com o ensaio sobre a mente e a liberdade. A luneta parece ter sido a grande escolha da sua vida e, ainda assim, não conseguiu usufruir desta com o propósito que desejava. Por estar tão "acostumado" a uma vida de escolhas sem raciocínio, se deixou levar mais uma vez.

Bem Resolvida disse...

Meu Dellls

E clotilde se sentiu amada!!
Eu estava quase optando pela versão 2, mas esse final mudou tudo. A luneta tão cara pra ele "vendo" o cometa sozinho e a coitada da mulher zacaria se sentindo amada (?!). Consigo imaginar a cara dele depois do ato, olhando pra luneta...