sexta-feira, 15 de agosto de 2008

[Ensaio] A mente e a liberdade.

Consideremos umas idéias: a capacidade de raciocínio diferencia o homem do animal; perante a lei todos são livres; a racionalidade se desenvolve de maneiras diferentes para cada indivíduo; por isso, cada um exerce à sua própria maneira a liberdade que a lei atesta. Mas e daí? Hegel dispara, sem clemência: “A liberdade é a necessidade compreendida”. Necessidade compreendida? Mas não existia a liberdade? Ou ela é apenas um sofisma demagógico, uma sensação ilusória? No imediatismo latente do século XXI, esquivando-se entre loucura do centro da cidade, entre pessoas tentando vender algo urgentemente, entre pessoas pedindo, entre pessoas indiferentes, resta uma questão chave não só para as humildes manifestações literárias deste blog, mas também para nossa própria sobrevivência enquanto indivíduos: o que significa a liberdade? Ou melhor, como nossa liberdade pode servir para alguma coisa, entre tantas cicatrizes de relações materiais e instantâneas? Quando se fala em liberdade, a primeira imagem que nos vem à mente é a de um negro apanhando acorrentado, igualzinho a professora nos ensinou na escola! Ele está preso, logo não é livre, lógico. A partir de 13 de maio de 1888 todos passaram a ser livres no Brasil, pelas mãos da bondosa princesa – foi o que lhe ensinaram, não foi?! Mas e se a liberdade for algo além de cativeiros, cordas e grilhões? E se existir dentro de nós mesmos um cativeiro onde estejamos apanhando acorrentados?

Óbvio que a liberdade física é um dos principais signos da dignidade. Mas existem correntes que só podem ser rompidas dentro de nós mesmos. O homem é um ser racional justamente por conseguir encontrar soluções indefinidas para seus problemas – diferente de um cachorro, que depois de adestrado passa a responder de forma ainda mais previsível que o normal – seu universo de escolhas são meramente instintivos, dependem de estímulos externos. O cachorro pode sair pela rua, andando aleatoriamente – pode até mesmo ampliar seus horizontes, perambulando por ruas desconhecidas – e depois da jornada ainda pode voltar pra casa, ou continuar na rua; mas nunca decidirá poupar um pouco de sua ração por mês, para angariar fundos e conhecer a Indonésia, nem se interessará mais por cadelas que leiam Dostoievski do que pelas que passem horas se enfeitando no Pet-shop. Até um pouco além disso: Santo Agostinho diferencia Liberdade e Livre-arbítrio, este sendo uma faculdade livre de eleição, independente dos conceitos axiológicos, enquanto a liberdade é o livre-arbítrio usado para construir algo – para o padre filósofo, só somos livres quando buscamos o ‘bem’. Não adianta apenas agir de acordo com a vontade. Hegel sorri mais uma vez, incógnito – “A liberdade é a necessidade compreendida”! Juntando as peças: podemos levar a vida como bois no pasto, ou mesmo como cães vadios; podemos tomar decisões pautadas na nossa própria satisfação, sem muitas considerações externas; ou podemos agir coordenadamente, raciocinando sobre o maior número de hipóteses possíveis (questão de capacidade individual). A escolha, sobretudo enquanto ‘processo’ de escolha – ou melhor: a consciência da escolha. A liberdade não é um status, nem mesmo uma idéia: é um movimento contínuo, autoconstrutivo, onde o indivíduo nunca o é plenamente – apenas ‘vai sendo’, no decorrer de seu exercício. Age livremente. O indivíduo é o processo de sua própria liberdade – e por ser processo, se deixar de exercê-la, volta a pastar! No meio campo, Kierkgaard corre pra linha de fundo e cruza: ninguém quer ser ‘o pior’ possível, apenas o é quando não encontra em sua consciência a resposta que necessita – ao tomar consciência do ‘erro’, reconhecendo-o como tal, o reflexo natural é repará-lo ou ao menos deixar de praticá-lo – evoluir! É a sabedoria popular: “errar é humano, insistir é burrice”! Nascemos pedra bruta, a vida nos dá a erosão, o clima nos influencia, e nós vamos lapidando nossa própria consciência de acordo com as ferramentas que encontramos pelo caminho. Alguns têm as mãos vazias, outros carregam marretas, outros marretas e cinzéis: cada qual com o que conseguiu juntar pelo caminho. É a diferença entre ter filhos aleatoriamente, escolher ter no máximo dois, ou não ter nenhum. É a escolha da profissão, dos amigos, e do banco onde poupar para a aposentadoria. É escolher entre ir à pé, de carro, ou de bicicleta. É escolher entre almoçar salada, um prato refinado, ou o junkie food. É decidir ler algo interessante, preparar um bolo, ou ficar assistindo novela. Enfim, é a escolha – e sua consciência que diga qual é a melhor em cada caso!

“A liberdade é a necessidade compreendida”, exclama mais uma vez o alemão! Sim, é ‘compreendida’, pois é absorvida por um processo racional de escolhas; é ‘necessidade’, pois a vontade é imprescindível no processo de escolha – e só a sua própria consciência poderá lhe indicar o que é ou não necessário! A necessidade sem compreensão é imposta, logo não é livre – e a compreensão sem a necessidade dificilmente alimenta a ‘praxis’ que impulsiona o movimento. O eixo do motor da liberdade está na compreensão – e como motor, precisa de um combustível: a escolha consciente, mais uma vez! Raciocinemos, então! Cada letra, cada vírgula, cada ponto final! Cada gole de cerveja, cada noitada, cada história. É a sua escolha – e só ela – quem lhe dará as ferramentas necessárias para soltar os grilhões que lhe acorrentam o tornozelo ao solo. Cada escolha, consciente ou não, lhe dará uma nova ferramenta e cabe a você aproveitá-la ou não. Pense, aceite, altere, negue ou recuse, mas escolha. Escolha antes que alguém escolha por você. A coletividade é a Esfinge, de prontidão, enigmática: “decifra-me, ou te devoro”. Seja livre, conheça-se, pense e exista! Enfim, liberte-se!

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