terça-feira, 5 de agosto de 2008

[Conto] O Átrio e o Ventrículo.

Meu nome é Benedito, tenho trinta e um anos, estou limpo há três dias, e não sei até quando conseguirei me manter assim. Não tenho muita experiência em falar em público, e não sei ao certo o motivo de compartilhar essa história assim, com todos vocês, mas algo me impulsiona, e sei que me sentirei melhor após o relato. Quero falar não sobre o amor da baixa literatura, das canções populares, nem um amor de novela, pasteurizado e sem maiores impactos na existência do indivíduo. Para mim, é plenamente possível amar várias mulheres ao mesmo tempo – sem um sentido de libidinagem, como pode parecer à primeira vista, mas um amor verdadeiro, sincero e entregue para várias pessoas ao mesmo tempo – e isto tem confundido um pouco as pessoas com quem me relaciono, causando-me algumas angústias nos últimos meses. Vou contar minha história, e espero não ser julgado sumariamente por isso, pois tudo o que fiz foram escolhas baseadas nos meus desejos conscientes, na minha liberdade e nas responsabilidades inerentes.

Primeiro conheci Manoela numa tarde ensolarada de outono – eu de ressaca, andando no parque, ela sentada na grama, lendo Veríssimo. Morena de olhos claros, lábios finos, e um olhar com um pinguinho de timidez. Mexeu mesmo com meu coração. Trocamos olhares na primeira volta, e na segunda sentei ao seu lado. Conversarmos demoradamente sobre assuntos diversos, cães, viagens, filhos, horóscopo, vinil, livros, hinduísmo, e bares onde ouvir MPB. Peguei o telefone, e combinamos de ver um show de bossa nova na quarta seguinte – tudo muito próximo, mas ao mesmo tempo mantendo uma respeitosa distância. Fui pra casa com um sorriso de ‘conquistador barato doido pra se enrolar’ na boca, tomei um banho, fumei um, e me mandei pro inferninho de costume, para tomar uma gelada e observar o movimento. Ainda pensava bastante em Manoela, com seu jeitinho de mulher para casar. Cerveja vai, cerveja vem, conversas cruzadas, e de algum lugar surge na minha frente Márcia, amiga da amiga de uma amiga, que era de Sampa, mas morava aqui há cinco meses. Falava sobre Heidegger sem ser muito clara no que tentava de dizer, como quem pisa devagar, medindo o terreno, até ter certeza de que ninguém a sua volta sabe mais sobre o assunto do que ela própria. Gesticulava de uma forma divertida, falava com as mãos, e de quinze em quinze minutos ia ao banheiro com uma das amigas. Atração imediata, sexo intenso, e a imagem marcante de acordar todo arranhado, com ela batendo as portas da cozinha do meu apartamento, preparando o café da manhã, aquelas pernas finas, cobertas apenas por uma camisa minha que ela vestiu como se fosse pijama. Da mesma forma como surgiu, desapareceu no dia seguinte, sem deixar sinais. Passei o início da semana sóbrio, tomando apenas umas cervejas em casa, até que na quarta feira de tarde liguei para Manoela, para irmos ao show. Combinamos, passei na casa dela, e fomos ao teatro. Ótimo show, embora meio paradão, e no final me pediu para deixá-la em casa cedo, pois precisava resolver alguns problemas de trabalho no dia seguinte. Tradicionais malhos na frente da casa dos pais dela, e voltei pra casa com os ovos doendo, alucinado por seus suspiros no meu ouvido a cada investida nos atritos entre nossas calças jeans, e uma frase na cabeça “Não, não, estamos indo rápido demais!”. Não rolou nada além, mas mexeu ainda mais com meus desejos, tanto que não agüentei a ansiedade e liguei para ela de volta na sexta, para completarmos nossa programação. Saímos, tomamos um vinho, e fomos para o meu apartamento. Manoela tinha um sexo úmido, lento e ofegante, que durou até às quatro da manhã, quando me pediu para levá-la de volta para casa. Estava decidido a passar um tempo com Manoela, sossegado como um bom homem apaixonado e tudo ia correndo tranquilamente, até que dois dias depois Márcia surgiu novamente, tão inesperada quanto da vez passada, e de tantas outras vezes que surgiria em minha vida, como um raio, ou melhor, consumindo dos raios a energia com que se impunha na cama. Estava apaixonado por Manoela, mas o sexo intenso e vigoroso de Márcia me prendia de uma forma que acabei alimentando um relacionamento com as duas, uma como namorada dos sonhos e candidata a futura mãe de meus filhos, regrada e responsável, outra como amante dos sonhos, selvagem, hiperativa e inconseqüente. Foi assim que minha vida começou a seguir um rumo que até então eu sequer imaginaria.

Durante o primeiro mês, tudo se manteve na normalidade, namorada de um lado, amante do outro, cada uma me confortando à sua maneira. Mas por volta do início do segundo mês nesse ritmo de alternâncias, eu mesmo não consegui mais diferenciar entre uma e outra, e passei a esperar uma conduta mais independente de uma, e mais carinhosa da outra. Não estava mais satisfeito com o que nenhuma apresentava. Embora a moral cristã não me afete como minha mãe gostaria, manter uma vida dupla e secreta não é das tarefas mais fáceis, e para um amador como eu o sentimento por ambas foi se misturando, a forma de atenção que julgava necessária a cada uma foi se convertendo, e a existência de ambas em minha vida me deu provas de que num relacionamento nem sempre os resultados dependem de nossas intenções, por mais ambígua que a relação possa ser. O sexo lento e úmido de Manoela havia se tornado mais intenso, cativante, e a cada dia me dava mais prazer, enquanto seu jeito extremamente sentimental estava saturando minha paciência com detalhes pequenos e minando todo o encanto existente; Manoela, de uma hora pra outra, tornara-se a representação do puro prazer sexual. Por outro lado, a forma insana como Márcia buscava o sexo e alguns antidepressivos não prescritos imprimiam-lhe um aspecto frágil, tudo não passando de uma encenação ávida para preencher seu interior com algo que lhe faltava, e essa carência mexia com meus sentimentos – uma mulher depressiva não pode parar! Passei a sentir um tesão incontrolável pela mulher que até então via como a possível mãe de meus filhos, e um carinho terno pela mulher que no princípio era para representar somente a satisfação dos prazeres da carne – de forma que, mais uma vez, não conseguia abrir mão de estar com nenhuma das duas, por desejar ambas, cada uma à sua maneira. Sinto que meus colegas de trabalho perceberam a mudança no meu comportamento, de alguma maneira, mas não abri espaço para que viessem conversar comigo – apesar de chegar ao trabalho visivelmente abatido, desinteressado, e com a barba para fazer. Não que alguma delas quisesse que a relação mudasse da forma como estava acontecendo; obviamente Manoela desejava aumentar a volúpia de nosso sexo, mas também desejava manter-se no papel de namorada, que ela julgava ser única, enquanto Márcia havia construído uma barreira ao redor de seus sentimentos, tornando muito mais fácil o sexo com alguém que não estivesse interessado neles. Márcia insistia em aparecer e sumir no meio de minhas noites, como uma gata no cio, e quando consegui começar a entrar no emaranhado complexo de seu lado emocional, o sexo passou a não render mais da mesma forma. Márcia se sentia perseguida, Manoela se sentia abandonada. Márcia queria liberdade, Manoela queria ser cada vez mais presa. E eu, no meio desse turbilhão de transformações, cercado pelas reações hormonais de cada uma delas, não conseguia me decidir por nenhuma das duas, buscando em cada uma exatamente tudo o que, no princípio, me fascinava justamente na outra.

Na metade do terceiro mês, Márcia foi internada, e descontando umas visitas supervisionadas à clínica, nos horários permitidos, minha relação com Manoela tornou-se mais próxima, ao ponto de ser apresentado aos seus pais, com direito a jantar e tudo – uma solenidade para a qual eu não estava preparado, mas tinha encarado com extremo carinho. Após dois meses de relacionamento com Manoela sem ter nada com Márcia a não ser nossos papos melancólicos nos horários de visita, creio que vocês já consigam imaginar para que lado tudo estivesse indo: as coisas haviam voltado ao normal, Manoela no papel de namorada única, exclusiva e futura mãe de meus filhos, e Márcia apenas como uma lembrança libidinosa de momentos de loucura. De fato, a relação havia se fortalecido, e já pensávamos inclusive em juntar nossas coisas em breve. Até minha relação no trabalho voltou ao normal, e eu voltava a chegar no horário – tudo mais ou menos nos trilhos de volta. Mais ou menos...no dia que Márcia saiu da clínica, lá estava eu, com um buquê de flores esperando na porta, pronto para dar um fim à nossa quase-relação. Juro pra vocês que quase aconteceu isso, mas na verdade fomos para o meu apartamento, e tudo correu de uma forma suave, leve e apaixonada como nunca havia acontecido antes, e Márcia quase me causa um infarto ao dizer baixinho no meu ouvido um ‘eu te amo’ que fez estremecer todas as minhas verdades. Dormi um sono pesado, ao lado de seu corpo encaixado ao meu de uma forma como nunca antes havia acontecido, acomodado na maciez de suas pernas finas. Isso aconteceu há cinco dias atrás. No dia seguinte, lá fui eu até a casa de Manoela, decidido a terminar o relacionamento. Estava realmente decidido, pois já pressentia que alguém sairia muito machucado dessa história, e essa vida dupla não podia mais persistir. Manoela me recebeu com um beijo totalmente desencorajador para o fim de um relacionamento – minhas pernas simplesmente travaram. Ela tinha uma novidade incrível pra contar, provavelmente sobre a entrevista de emprego do dia anterior, ou algo assim, e por isso achei melhor ouvir tudo antes de terminar o relacionamento, mas ela me deu a notícia como quem joga um tijolo no meu colo: está grávida! A mulher que eu conheci a uns seis meses atrás como possível candidata a mãe de meus filhos tinha sido efetivamente eleita, e agora eu não tinha mais como voltar atrás. Apenas sorri um sorriso mudo, abracei-a, e voltei pra casa dizendo que precisava assimilar melhor a idéia. Voltei pela rua com passos incertos, comprei duas garrafas de tequila, mais alguns itens de necessidade e me tranquei no apartamento. O pessoal do trabalho me ligou diversas vezes, mas não fui capaz de atender o celular e desliguei. Durante meus sonhos, Márcia e Manoela giravam em torno de mim, envolvidas em cores psicodélicas, rindo, descalças, vestidas com o mesmo vestido branco e com os cabelos molhados, girando cada vez mais rápido, até se tornarem a mesma pessoa – quando acordei desse sonho, resolvi procurar vocês. Como já sabem, me chamo Benedito, tenho trinta e um anos, e estou sóbrio há três dias, mas não sei mais quanto tempo vou agüentar.

4 comentários:

.beatriz moiana. disse...

.é muito fácil entender benedito.eu acho que o amor devia ser livre.e não assim, tão cheio de barreiras.mas o mais difícil disso tudo é ver que crescemos podados para esse amor sem fronteiras.se fossemos criados com total liberdade de amar, seríamos muito mais felizes.e o amor seria mais frequente.pq não podemos amar e desejar sem olhar a quem?é injusto isso.eu acho.

.adorei o texto.

Anônimo disse...

E aí se instala a crise existencial feminina: ser Márcia ou Manoela, ser desejada como Márcia ou Manoela? É difícil ser mulher!

Gustavo Martins disse...

inveja do benedito, que encontrou essa satisfação só em duas mulheres, condição mais fácil (ou menos difícil) de administrar.

pior é o zé, que caiu numa rede dessas mas no epicentro de um quadrado. isso mesmo, se apaixonou por quatro. mas isso é história lá pro MCP.

fidel: imagina o seguinte: o cara encontra essas duas mulheres numa só, mas éla é irremediavelmente apaixonada por outro (ou está numa relação estável com outro, mas ima relação, por algum motivo, impossível de ser dissolvida).

abraço, queridão! e que essa macumba continue forte e boa de cultuar

Índia Jurema Preta, Bicho véio, Filosofo Fabriciano disse...

Para variar o texto está ótimo. Gostei da forma como costurou os sentimento, como uma alga que balança pra lá e pra cá, de um lado a praia iluminada de outro o oceano misterioso e sombrio.

Para alegria do Zé, o coração têm quatro cavidades.

Abraço,
Victor Hugo