terça-feira, 16 de setembro de 2008

[Conto] – A Rainha do Funk

“Não compara com a de fé
Tu é lanchinho da madrugada
Mas se mexer com a fiel
Tu vai se ligar na parada”

‘Lanchinho da Madrugada’ – Funk carioca



Conheci Adália Regina nos meus tempos de Olaria, quando ela era rainha do baile funk da Vila Cruzeiro, inabalável e indolente sorriso no rosto, e uma sexualidade pulsante nos quadris. Pra esculpir aquele corpo todo, apenas um exercício: micro-saia sem calcinha nos bailes de terças, quintas e sextas, além das subidas e descidas diárias num morro da região. Delícia de mulata! Hoje sou um sortudo pai de família, bem sucedido em minha profissão, e morador da Tijuca – nada que me lembre aquele passado distante, mas confesso que ontem quase engasguei com meu próprio cuspe quando encontrei a Adália Regina, depois de dez anos, na reunião de condomínio do meu prédio. Juro que não é preconceito nem machismo, mas por mais aberta que seja a mente da pessoa, ela ficou com o estigma de um passado meio nebuloso. Nada contra o passado dela, nem nada disso, o importante é realizar todos os desejos e viver a vida intensamente, mas, pô, o vizinho do terceiro andar foi casar justo com a Adália Regina, a rainha do boquete da Vila Cruzeiro?! Tá, retiro o que disse...ainda não experimentei para saber se o título é justo, mas ainda assim, passado o susto dei graças a Deus por ser só um vizinho, e não um amigo meu! Ela já não é mais nem de perto a exuberância dos vinte e um, mas ainda é titular de um belo fêmur. O marido subiu antes da reunião de condomínio começar e eu fiquei ali, contemplando descaradamente aquele corpão de chocolate, imaginando o suculento sabor salgado de suas entranhas, e muito satisfeito por minha mulher não ter paciência com reuniões de condomínio. Adália Regina sentou-se de frente para mim, no círculo que havíamos formado no saguão do salão de festas, e cruzou as pernas, dando aos presentes uma aula detalhada de anatomia muscular da coxa feminina. Vestia uma saia amarela que lhe cobria apenas o principal. Eu também fui obrigado a cruzar as pernas, pelas sensações que aquela mulata me causava. O circo estava armado! É a única coisa que eu me lembro da reunião – tive que disfarçar um pouco, olhando em outras direções e balançando a cabeça afirmativamente, pois os demais conselheiros chegaram a estranhar eu não ter falado absolutamente nada durante a reunião, justo eu, um dos moradores mais participativos do prédio! De todo modo, fiquei marcando a saída daquela deusa no final da reunião de condomínio, providenciando o caminho para ficar a sós com ela no elevador – tive até que dizer para a Dona Celestina, uma idosa do primeiro andar que tem Alzheimer, que ela havia esquecido o casaco nas costas da cadeira. Enfim, a porta do elevador fechou e eu investi sensualmente no ouvido da beldade:

- Adália Regina...

Ela me olhou com um desdém que lhe era peculiar, desde os tempos de Olaria.

- Eu conheço o senhor de algum lugar?

- Clemente, lá de Olaria...

- Desculpe, não lembro!

- Eu adoraria fazê-la lembrar...

- Babaca!

Doeu! Ela saiu do elevador, no terceiro andar, e a visão da porta se fechando e ocultando lentamente aquelas pernas morenas cobertas apenas por um pedaço de pano amarelo, sob a trilha sonora de seus tamancos ecoando no assoalho doeram como punhaladas no meu ego! Voltei para meu apartamento, torcendo para que ela não levasse a história adiante, afinal causaria um grande mal-estar com minha esposa, e o marido dela era um armário. Deusdete, minha senhora, me esperava com a janta pronta, e algumas perguntas de praxe sobre a reunião de condomínio – ‘a babaquice de sempre’, limitei-me a responder, lacônico. Jantamos, e Deusdete foi dormir – eu, pela euforia que me causou Adália Regina, fiquei rolando na cama até que ouvi, lá por uma da madrugada, um barulho de portas sendo chutadas, gritaria, e pensei no pior: Adália Regina tinha dado com a língua nos dentes, e a confusão estava armada!

Corri para o banheiro e tranquei a porta, sentindo um suor gelado me brotando pela testa. Pela barulheira das portas, tive a certeza de que se tratavam de várias pessoas subindo as escadas com a morte nos olhos. Olhei minha cara amarela no espelho do banheiro, já ofegante, pressentindo o que poderia acontecer – minhas pernas estavam tremendo. Me certifiquei que a porta estava trancada, sentei-me no vaso, pus as mãos na cabeça e fiquei ali, estático, esperando o momento em que o marido de Adália Regina entraria com seus amigos violentos, e bateriam em mim até a morte, covardemente encolhido num canto do banheiro do meu próprio apartamento! Podia imaginar o barulho de meus ossos sendo quebrados impiedosamente, o sangue me escorrendo pelas gengivas nuas, meus dentes ensanguentados no chão. Imaginei Deusdete limpando as manchas do meu sangue nos azulejos, pensei na sua decepção ao tentar entender o motivo daquela violência toda, no luto, e nas dificuldades que passaria para se sustentar depois da minha morte. Senti-me mal, por todo mal que havia feito a Deusdete, mesmo pelos que ela não soube. A gritaria continuou por um tempo que não sei dizer o quanto durou, até que, enquanto rezava o Credo, ouvi três disparos, um silêncio, e o choro de Adália Regina reverberando mudo e agudo pelo corredor. Meu Deus, será que eu causei tudo isso, com uma mera cantada de elevador? Se ele foi capaz de matá-la ali, friamente, no meio do corredor, eu certamente não passaria daquela noite! Não daria esse gosto a eles, Deusdete não precisaria esfregar as manchas do meu sangue seco grudadas no azulejo, e nem chegaria a compreender aquela história toda: decidi me jogar pela janela do banheiro e morrer com um pouco mais de dignidade! Abri a janela o máximo que pude, tomei coragem, e quando me debrucei para reconhecer o terreno de minha queda, vi logo abaixo três viaturas da polícia paradas, com o giroflex ligado. Ainda havia esperança, caso a polícia agisse rápido! Rezei mais um Credo, ainda olhando pela janela, pronto para me jogar caso a porta fosse arrombada, até que vi os policiais saindo do prédio carregando meu vizinho baleado, seguido por Adália Regina maravilhosamente algemada, com uma expressão abatida, mas vestindo um pijama de cetim dourado que ressaltava ainda mais suas formas de ex-rainha do funk do baile da Vila Cruzeiro. Senti meu corpo se esquentando novamente, e ali, olhando pela janela do meu banheiro trancado, rendi minha última e solitária homenagem a Adália Regina, enquanto a via pela última vez antes da porta do camburão se fechar.

10 comentários:

Bem Resolvida disse...

hahaha
vai testando vai...uma hora vc ganha uma mijada!!!
hahahahahahaha

esse meu post deu o que falar!!!


by the way: odeio funk :P

Mariana disse...

Oi, Daniel, é muito fácil colocar a ferramenta de contagem de acessos ao blogue.
Entra no www.sitemeter.com e se cadastra, é tudo muito facinho e lá mesmo eles te passam o código e dizem onde vc tem que colá-lo no sistema do teu blogue.
Se eu consegui, vc consegue...rsss......
Mas se tiver dificuldade eu posso te passar o passo a passo, só não sei como faria isso.
Beijo, Mariana

Flávia disse...

Adália Regina é, literalmente, uma mulher de matar ;)

Beijos!

Camila disse...

BABACAAAAAAAA??????
hahahaha meu Deus!
faz tanto tempo que não escuto essa palavra haha

beijooos

Gabi disse...

adoooooooro teus escritos
bjos

Lisa disse...

Nossa! Ganhou uma fâ!
Adorei.

Alessandra Castro disse...

Hahahahahaah não se fazem mais mulheres assim :D

Mariana disse...

Caramba, que imaginação, hein?
E essa Adália Regina deixou saudades,,,rss,,,,,
danada ela, ne?

Anônimo disse...

Daniel, estão ótimos os contos!

Gustavo Martins disse...

punhetaaaaaaaça!

será que ele foi visitar a adália regina no presídio?

"e cruzou as pernas, dando aos presentes uma aula detalhada de anatomia muscular da coxa feminina" - deu pra ver daqui