quarta-feira, 22 de outubro de 2008

[Conto] A estranha cigana polivalente.

Algumas histórias só se permitem acontecer nas entranhas mais íntimas da cidade, à penumbra e em segredo, protegida dos olhos desatentos e apedrejadores do mundo. Cristina era uma mulher possessiva; seu ciúme sobrevivia ao fim das relações. Naquela época a vida e o tempo pareciam correr homogêneos, e a idade ainda não anunciava a urgência de viver cada dia como se fosse desesperadamente o último. A estranha cigana tinha somente alguns dentes podres figurando com o de ouro, solitário no canto direito da boca, mas era polivalente; jogava tarô, búzios, era astróloga, vidente, lia mãos, runas, cabala judaica e borra de café – Cristina a elegeu por parecer a mais completa do anúncio de jornal; pagou adiantado, e fez tudo conforme lhe foi instruído naquela saleta mal iluminada fedendo a velas aromáticas vagabundas. No primeiro alguidar, velas vermelhas, ovos, farofa com dendê, mel, açúcar, maçãs e uma garrafa de champanhe; no segundo, velas pretas com fitas vermelhas de cetim, farofa com sal, pimenta, pipoca, frango assado e uma garrafa de cachaça, tudo deixado numa encruzilhada próxima ao cemitério local durante a madrugada. Ira – dos pecados, o mais pungente; aquele caprichosamente praticado por Deus, esporadicamente, para pôr as coisas em seu devido lugar! O ciúme é corrosivo como o sal fustigando o manto dos gastrópodes, roubando-lhes a água, sugando-lhes a vida, até secarem por completo. Segundo a velha cigana, um dos despachos era para trazer Claudionor de volta; o outro, era para eliminar a amante do mapa, impiedosamente, abrindo-lhe assim todos os caminhos para a felicidade plena. A ira de Cristina estava cega na salmoura do ciúme, e numa dor entorpecida de mulher abandonada – ele será seu novamente, custe o que custar.

sábado, 18 de outubro de 2008

[Conto] Prosa descontínua do substantivo feminino.

A ambulância, a maternidade, a luz. A enfermeira, a palmada, a tesoura. A mãe, a infância, as palavras. A bicicleta, a pipa, a amizade. A adolescência, a primeira vez, a paixão. A filosofia, a música, a ilusão. A carteira de motorista, a faculdade, as festas. As noites, as bebidas, as mulheres. A moto, a praia, a euforia. A viagem, a paisagem, a namorada. A paixão, a fidelidade, a tentação. A mulher, a poesia, a prestação. A pia, a geladeira, a máquina de lavar. A sogra, a empregada, a cunhada. A gravidez, a maternidade, a luz. A filha, a crise financeira, a discussão de relacionamento. A outra, a separação, a pensão alimentícia. A depressão, a escolha, a reconstrução. A noite, a liberdade, a namorada. A mudança, a adaptação, a tranquilidade. A união estável, a segunda filha, a nova fase. A carreira, a estabilidade, a realização. A adolescência, a insônia, a preocupação. A faculdade da filha, a aposentadoria, a velhice. A neta, a teogonia, a televisão. A transcendência, a entrega, a morte.

sábado, 11 de outubro de 2008

[Conto] Interseções!

Depois de três anos, Sandra Mara acordou. Abriu os olhos lentamente, ainda não acostumados à luz do dia, identificou o quarto à sua volta, mas não o reconheceu - era seu quarto, aquele que arrumava todos os dias, assim como o resto da casa, mas tudo lhe era estranho. Olhou as roupas do marido espalhadas sobre a cama, a toalha pendurada na porta do banheiro, e percebeu que, por algum motivo, ali não era mais o seu lugar. Aversão pura e simples de fêmea insatisfeita; sem brigas, sem traições, sem mágoas - apenas o desejo incontido de oferecer seu ventre e sua plenitude a outro homem, que ainda não conhecia - sim, ainda havia tempo! Seu marido jamais compreenderia. Perguntaria se tem outro, se estava magoada com algo, se queria viajar para a praia, se estava tudo bem no emprego - mas nunca seria capaz de assimilar que aquele amor acabou, através de um sentimento singelo e sem culpa de 'não-amor': talvez um amor de amigo; e para ele, em seu modo pragmático de enxergar, nada mais obscuro do que o simples deixar de sentir. Ou tem amor, ou desprezo; ou é paixão, ou ódio; ou tesão, ou aversão. Enquanto para ele o amor era algo eterno e inabalável, para ela havia acabado de se mostrar efêmero e aleatório, naquela manhã ensolarada de um dia qualquer - a intensão de parecer viver um conto de fadas se desfez, e ela percebeu que ninguém é feliz para sempre. Decidiu contar-lhe tudo no jantar de sexta-feira. Ele chorou, declarou seu amor e foi pateticamente estúpido, alternando entre as três reações quase que dentro do mesmo espaço de tempo. Fez várias perguntas, não acreditou em nenhuma das respostas; afirmou que sem ela não poderia viver, que não saberia como viver sozinho. Disse, como quem se rende ao inimigo, que o divórcio é pior que a morte. Mas Sandra Mara era o vazio agoniante e frio de uma noite no deserto.

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

[Conto] O beijo da Esfinge!

“...ya no la quiero, és cierto, pero talvez la quiera...”
Pablo Neruda, “Los Veinte poemas de amor, y uma canción desesperada”.


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Com toda certeza não a amo nem estou apaixonado, não tente rotular o que não você conhece! Palavras são signos que nem sempre expressam plenamente um significado, mas se fosse para tentar tecer uma comunicação com um mundo externo ao meu, escolheria ‘desejo’. Não aquele meramente carnal – mais do que comê-la, preciso devorá-la e digeri-la lentamente – mas seus beijos são como um balão, começando do ponto mais alto seu declínio lento e frio. Sob os lençóis, a Esfinge repousa serena, como quem monta guarda em frente a um portal acessível para poucos. Ela não quer promessas, não precisa delas; tem fome de respostas, mas não pode pronunciar as perguntas. Em seu labirinto particular, a última vítima procura desesperadamente pela saída, enquanto seus olhos passeiam suaves pelo mundo, e eu observo à distância, tentando decifrar os enigmas da entrada de seu templo. O sol brilhando sobre seus flancos me ofusca a visão, e eu desvio os olhos para baixo. Busco seus pontos fracos com os passos silenciosos e precisos de um caçador de leoas, mas é inútil: a cada investida mais incisiva, o chão sob meus pés se desfaz em abismos intransponíveis. Ofegante, enxugo o suor em minha testa e observo. A enigmática mulher com corpo de leoa desvia os olhos para mim por uns instantes, e sorri intocável; tenho acesso a seu corpo, mas ela está guardando a entrada de um mundo inacessível para mim. Segundos antes de perder os sentidos, ouço um sussurro quase inaudível: “Decifra-me, ou te devoro!”.

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

[Conto] Fragmentos

Clotilde usou o FGTS que recebeu com a demissão para reforçar sua escassa dentição. O seguro desemprego ainda lhe renderia mais cinco meses sem trabalho e ela resolveu experimentar coisas novas. Caiu de pára-quedas no underground, aprendeu a beber, a fumar, mudou o estilo da vestimenta, e se enturmou com um pessoal meio metido a intelectual, mas que sempre ria de suas piadas sexualmente caricatas com certa incredulidade da situação surreal de ver aquela mulher tão parecida com o Zacarias falando palavrões. Passou a gostar de Rockabilly, deixou as meninas cortarem seu cabelo, e começou a sair todos os dias. Sexo, drogas e rock’n roll, com muito mais rock’n roll do que sexo e drogas, e tudo corria tranqüilo, até que ela voluntariosamente se ofereceu para cozinhar para a turma – ela entrava com os conhecimentos culinários, eles com os ingredientes. Mais de vinte pessoas foram experimentar o tal risoto ao funghi, panelão no fogo, todos comendo com muita satisfação. Clotilde acordou ao meio-dia numa praia que não conhecia, e até deu uma risada maliciosa, ao perceber sinais de uma possível noite de sexo da qual não se lembrava.

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

[Conto] A Flor do Lodo.

Madalena subiu o vestido, abotoou no ombro, vestiu a calcinha, pegou todo o dinheiro, o pacote com o pó branco, e saiu apressada, aproveitando que o homem da noite anterior ainda dormia, num típico apartamento com cheiro de mofo no centro da cidade, às nove da manhã de um dezembro escaldante, enquanto os ruídos daquela quarta-feira soavam uníssonos; o estômago da cidade começava a roncar sua fome capitalista. Não lembrava seu nome, nem queria saber. Desceu as escadas encarando a agressividade quase evangélica da luz do dia, desceu quatro ruas, entrou no Mc Donald’s, comprou uma Coca, pediu dois canudinhos, e se trancou no banheiro por uns minutos, para se recompor. O divórcio lhe foi cruel; a vida lhe cobrou com a inflexibilidade de um vigário. Traição não se perdoa; ela não foi perdoada, nem se perdoou. Trinta e cinco anos, sem filhos, e a sensação da juventude esvaída – ou pior, despedaçada em oito anos de trepadas burocráticas, daquelas em que nem se tira a roupa por completo.

terça-feira, 16 de setembro de 2008

[Conto] – A Rainha do Funk

“Não compara com a de fé
Tu é lanchinho da madrugada
Mas se mexer com a fiel
Tu vai se ligar na parada”

‘Lanchinho da Madrugada’ – Funk carioca



Conheci Adália Regina nos meus tempos de Olaria, quando ela era rainha do baile funk da Vila Cruzeiro, inabalável e indolente sorriso no rosto, e uma sexualidade pulsante nos quadris. Pra esculpir aquele corpo todo, apenas um exercício: micro-saia sem calcinha nos bailes de terças, quintas e sextas, além das subidas e descidas diárias num morro da região. Delícia de mulata! Hoje sou um sortudo pai de família, bem sucedido em minha profissão, e morador da Tijuca – nada que me lembre aquele passado distante, mas confesso que ontem quase engasguei com meu próprio cuspe quando encontrei a Adália Regina, depois de dez anos, na reunião de condomínio do meu prédio. Juro que não é preconceito nem machismo, mas por mais aberta que seja a mente da pessoa, ela ficou com o estigma de um passado meio nebuloso. Nada contra o passado dela, nem nada disso, o importante é realizar todos os desejos e viver a vida intensamente, mas, pô, o vizinho do terceiro andar foi casar justo com a Adália Regina, a rainha do boquete da Vila Cruzeiro?! Tá, retiro o que disse...ainda não experimentei para saber se o título é justo, mas ainda assim, passado o susto dei graças a Deus por ser só um vizinho, e não um amigo meu! Ela já não é mais nem de perto a exuberância dos vinte e um, mas ainda é titular de um belo fêmur. O marido subiu antes da reunião de condomínio começar e eu fiquei ali, contemplando descaradamente aquele corpão de chocolate, imaginando o suculento sabor salgado de suas entranhas, e muito satisfeito por minha mulher não ter paciência com reuniões de condomínio. Adália Regina sentou-se de frente para mim, no círculo que havíamos formado no saguão do salão de festas, e cruzou as pernas, dando aos presentes uma aula detalhada de anatomia muscular da coxa feminina. Vestia uma saia amarela que lhe cobria apenas o principal. Eu também fui obrigado a cruzar as pernas, pelas sensações que aquela mulata me causava. O circo estava armado! É a única coisa que eu me lembro da reunião – tive que disfarçar um pouco, olhando em outras direções e balançando a cabeça afirmativamente, pois os demais conselheiros chegaram a estranhar eu não ter falado absolutamente nada durante a reunião, justo eu, um dos moradores mais participativos do prédio! De todo modo, fiquei marcando a saída daquela deusa no final da reunião de condomínio, providenciando o caminho para ficar a sós com ela no elevador – tive até que dizer para a Dona Celestina, uma idosa do primeiro andar que tem Alzheimer, que ela havia esquecido o casaco nas costas da cadeira. Enfim, a porta do elevador fechou e eu investi sensualmente no ouvido da beldade:

- Adália Regina...

Ela me olhou com um desdém que lhe era peculiar, desde os tempos de Olaria.

- Eu conheço o senhor de algum lugar?

- Clemente, lá de Olaria...

- Desculpe, não lembro!

- Eu adoraria fazê-la lembrar...

- Babaca!

Doeu! Ela saiu do elevador, no terceiro andar, e a visão da porta se fechando e ocultando lentamente aquelas pernas morenas cobertas apenas por um pedaço de pano amarelo, sob a trilha sonora de seus tamancos ecoando no assoalho doeram como punhaladas no meu ego! Voltei para meu apartamento, torcendo para que ela não levasse a história adiante, afinal causaria um grande mal-estar com minha esposa, e o marido dela era um armário. Deusdete, minha senhora, me esperava com a janta pronta, e algumas perguntas de praxe sobre a reunião de condomínio – ‘a babaquice de sempre’, limitei-me a responder, lacônico. Jantamos, e Deusdete foi dormir – eu, pela euforia que me causou Adália Regina, fiquei rolando na cama até que ouvi, lá por uma da madrugada, um barulho de portas sendo chutadas, gritaria, e pensei no pior: Adália Regina tinha dado com a língua nos dentes, e a confusão estava armada!

Corri para o banheiro e tranquei a porta, sentindo um suor gelado me brotando pela testa. Pela barulheira das portas, tive a certeza de que se tratavam de várias pessoas subindo as escadas com a morte nos olhos. Olhei minha cara amarela no espelho do banheiro, já ofegante, pressentindo o que poderia acontecer – minhas pernas estavam tremendo. Me certifiquei que a porta estava trancada, sentei-me no vaso, pus as mãos na cabeça e fiquei ali, estático, esperando o momento em que o marido de Adália Regina entraria com seus amigos violentos, e bateriam em mim até a morte, covardemente encolhido num canto do banheiro do meu próprio apartamento! Podia imaginar o barulho de meus ossos sendo quebrados impiedosamente, o sangue me escorrendo pelas gengivas nuas, meus dentes ensanguentados no chão. Imaginei Deusdete limpando as manchas do meu sangue nos azulejos, pensei na sua decepção ao tentar entender o motivo daquela violência toda, no luto, e nas dificuldades que passaria para se sustentar depois da minha morte. Senti-me mal, por todo mal que havia feito a Deusdete, mesmo pelos que ela não soube. A gritaria continuou por um tempo que não sei dizer o quanto durou, até que, enquanto rezava o Credo, ouvi três disparos, um silêncio, e o choro de Adália Regina reverberando mudo e agudo pelo corredor. Meu Deus, será que eu causei tudo isso, com uma mera cantada de elevador? Se ele foi capaz de matá-la ali, friamente, no meio do corredor, eu certamente não passaria daquela noite! Não daria esse gosto a eles, Deusdete não precisaria esfregar as manchas do meu sangue seco grudadas no azulejo, e nem chegaria a compreender aquela história toda: decidi me jogar pela janela do banheiro e morrer com um pouco mais de dignidade! Abri a janela o máximo que pude, tomei coragem, e quando me debrucei para reconhecer o terreno de minha queda, vi logo abaixo três viaturas da polícia paradas, com o giroflex ligado. Ainda havia esperança, caso a polícia agisse rápido! Rezei mais um Credo, ainda olhando pela janela, pronto para me jogar caso a porta fosse arrombada, até que vi os policiais saindo do prédio carregando meu vizinho baleado, seguido por Adália Regina maravilhosamente algemada, com uma expressão abatida, mas vestindo um pijama de cetim dourado que ressaltava ainda mais suas formas de ex-rainha do funk do baile da Vila Cruzeiro. Senti meu corpo se esquentando novamente, e ali, olhando pela janela do meu banheiro trancado, rendi minha última e solitária homenagem a Adália Regina, enquanto a via pela última vez antes da porta do camburão se fechar.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

[Crônica] – O Babaca!

Ninguém está isento: todo mundo conhece um babaca, tem um na família, ou talvez algum dia até tenha sido um, em alguma oportunidade! Não é difícil encontrá-los por aí, aleatoriamente, pois eles costumam ter grande destaque no trânsito, no trabalho, na vizinhança, nas praias, cinemas, e em lugares de uso coletivo em geral – não precisa nem procurar: até mesmo quando você está em casa, dormindo, é capaz de algum te ligar, num sábado, às oito da manhã. São aqueles que costumam comparecer a todas as reuniões de condomínio – ou você acha que o condomínio do seu prédio está tão caro por que outro motivo? Reformas inúteis no salão de festas, aposto! Isso que não vou nem entrar no mérito das cartas aos condôminos, afixadas no espelho do elevador, com seu bizarro linguajar pseudo-erudito! Pessoas normais não conseguem tolerar a quantidade de babaquice existente em uma reunião de condomínio – não mesmo – freqüentar a todas é um martírio!

Mais do que um mero incômodo, eles são possivelmente o grande mal da humanidade: invariavelmente, sempre o babaca é o primeiro a incentivar uma guerra ou causar uma briga no trânsito; alguns adoram soltar balões; costumam deixar lixo por onde passam; a ouvir música ruim a toda altura; é aquele que manda mensagens bonitinhas em Powerpoint para o seu e-mail toda manhã; e também aquele cara que gasta milhares de litros de água por final de semana, lavando o carro e a calçada toda manhã de sábado; o babaca é aquele que, apesar de todo seu otimismo, vai ficar lhe dizendo o tempo todo que você está na merda! Além do mais, os babacas são invariavelmente preconceituosos – pode notar...todos têm sua parcela de culpa pela degradação das relações humanas, grande ou pequena, mas tem. Babacas falam o que querem, param o carro em fila dupla, arrancam com o carro em cima do pedestre, e cagoetam qualquer atraso dos colegas pro chefe – aliás, há uma infinidade de modalidades de babaca: tem o babaca quieto (aquele que consegue irritar mesmo quando está calado), o autoritário (também conhecido como ‘senhor da verdade’), o invejoso (aquele típico colega que não sabe fazer um ‘O’ com o copo, mas acha injusto que os outros tenham qualquer tipo de vantagem financeira), o eloqüente (aquele que fala que nem uma matraca, sem ninguém querer ouvi-lo), o musical (escuta Banda Calipso em volume audível por terceiros), o papagaio (aquele que visivelmente fala mais do que come), e tantos outros. Tem babaca pra todo (des)gosto!

Na tentativa de uma pretensiosa – e quase babaca – ‘definição técnica’, diria que o babaca é aquele indivíduo que simplesmente ignora regras básicas do convívio humano, por estar tão concentrado em um inabalável mundo interno, que as outras pessoas são vistas somente como um obstáculo, e não uma possível fonte de conhecimentos e troca de experiências – ele simplesmente age, deliberadamente, sem pensar, sem refletir, sem se importar! A frase preferida de todo babaca é um irônico “Foda-se!” – não que seja de uso exclusivo deles, mas estatisticamente são eles que mais vezes a repetem, com toda certeza! Um babaca só deixa de ser babaca quando percebe que não são só os outros que são babacas. E é por isso que eu rezo diariamente: Senhor, sei que as doenças são naturais; entendo que a morte é um estágio da existência; que nem todo mundo possa ser rico ao mesmo tempo, e que a fome e a violência estão aí para que aprendamos a exercitar nossa compaixão; compreendo que algumas pessoas nasçam mentalmente debilitadas; aceito resignado os desastres naturais dizimando milhares de pessoas ao mesmo tempo; não dou dinheiro a profetas que usam seu santo nome em vão; e tento ser um cidadão respeitável, dentro das minhas limitações – Senhor, compreendo que os desígnios divinos sejam além de nossa compreensão, mas pelo amor de Deus: LIVRAI-NOS DA BABAQUICE!!!

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

[Conto] A volta da Úrsula!

Ela voltou mais uma vez aterrorizando minhas meias verdades com seus trejeitos fatais, sem aviso, e com a autoridade que só ela tem sobre mim, me revirando do avesso e me deixando de joelhos, rendido em plena madrugada. Ainda não sei explicar como ela consegue – um pouco de química, física e uma pitada de fortes sentimentos. Sem eu perguntar ou mesmo permitir, ela questiona meus anseios, pondo em cheque minhas noites, minhas bebidas, e até mesmo o que eu ando comendo por aí. Diz-me que preciso de disciplina. Quando ela chega assim, sem avisar, sinto um pouco de mim se esvaindo por minha boca, sem que eu possa resistir; mais uma vez o aviso geral que parei de beber é estampado na minha testa, para os amigos não ficarem me tentando com aquele papo de ‘só um golinho ela nem vai perceber’ – não adianta: ela percebe, e sairá mais uma vez me humilhando madrugada afora! Quando chego dizendo que preciso dar um tempo nas noites, todos já sabem que ela voltou mais uma vez, me jogando na cara que eu tenho que criar juízo, ser mais adulto, que preciso ser mais centrado, que preciso tomar jeito – embora eu não saiba exatamente o que isso significa (ou realmente se significa alguma coisa idêntica para pessoas diferentes), abaixo a cabeça e tento absorver a lição. Ela não está interessada em discutir sobre fenomenologia, não adianta tentar amenizar seus conceitos. Ela nunca cede! Não adianta resistir: enquanto eu lutar contra suas vontades ela continuará me atormentando, me prendendo, até que eu ceda e me comporte como ela julga correto. Mais uma vez ela está inserida nos meus dias, e, no fim, só me resta a certeza de que ela só irá embora quando mais uma vez eu finalmente atender a todos os seus anseios...

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

[Conto] O último cometa do século! (versão 3)

- Dona Clotilde, não tenho mais nada para conversar com a senhora! Aliás, já faz mais de um mês que a senhora não trabalha mais conosco...
- Mas Seu Gregório, o senhor sabe que eu sou uma mulher de Deus! Sou evangélica! Aquilo que aconteceu foi um momento de loucura – e a culpa foi toda daquele cafajeste do Adamastor! O senhor acredita que mesmo depois de tudo o que aconteceu, ele sequer me ligou para saber como eu estava? Passou meses flertando comigo durante o serviço, se fazendo de homem sério, e no final o que aconteceu? Sequer falou comigo depois que conseguiu o que queria! Como o senhor sabe, eu sou uma mulher sozinha desde que o Cléverson, meu marido, saiu de casa – isso já faz cinco anos, e desde então eu continuei imaculada...
- Dona Clotilde, não me interessam seus problemas pessoais...
- Mas, pelo amor de Deus, o senhor tem que me ouvir! Eu sou uma mulher sozinha há mais de cinco anos, e preciso do emprego para pagar minhas contas! Não tenho filhos, nem irmãos, e todos os meus parentes já morreram – além do mais, eu vim do interior muito nova pra esta cidade imensa, não tenho com quem contar! Minhas únicas amigas são da igreja, e todas são casadas – não vão poder me receber até que eu consiga um novo emprego. Moro num conjugado num bairro distante, e se eu não pagar o aluguel, o senhor já sabe, né?! O proprietário já ameaçou me botar pra fora na pancada! Na pancada! Pra pobre, o senhor sabe como é a justiça, né?! Sou uma mulher de idade, Seu Gregório: não conseguirei um emprego como este – esse mundo não dá vez para mulheres da minha idade! Eu juro, Seu Gregório, eu vinha trabalhar todos os dias pontualmente, nunca me insinuei, sempre usei o uniforme do condomínio, comportada, nunca causei problemas, sou uma mulher de idade, evangélica...nunca dei motivo nenhum para ele me atacar daquele jeito! Desde que meu marido saiu de casa, entreguei meu corpo a Jesus! Quando saio, é para ir à igreja – e sempre com saia comprida, cabelo preso e sem maquiagem. Sou dizimista. Sigo tudo o que o pastor nos ensina durante os cultos! Já estava decidida a não ter mais nenhum homem na minha vida, até que aquilo tudo aconteceu...sou uma mulher casada com o nosso Senhor Jesus Cristo, Seu Gregório...
- Sei...
- O Adamastor não – vinha sempre com aquele bafo de cachaça, e apesar do jeito rude dele na frente dos outros, quando estávamos a sós ficava me paquerando, dizendo gracejos, me olhando com malícia. Eu sempre continuei na minha, esperando que ele me convidasse para sair, para conversar – mas não! O Adamastor queria o mesmo que todos os homens querem – só eu que fui burra e não percebi a tempo...como sou burra! Todos sabem que ele é um sujeito sozinho, por isso é tão rabugento! Ou é sozinho porque é rabugento, agora não sei mais! Acho que ele ficou rabugento assim desde que a mulher e a filha foram morar no interior – ele diz para todos que ela foi morar com a sogra, mas todos comentam que ela arrumou é outro homem mesmo, porque não agüentou o Adamastor. Não duvido nada – aquele machista, pudim-de-cachaça! Mas no fundo eu sempre o defendi, quando todos os outros funcionários começavam a falar mal – o senhor sabe como é o gênio do Adamastor, né, não se dá bem com ninguém, e todo mundo sabe que nunca foi mandado embora só por ser antigo no condomínio. Dizem que ele está aqui desde muito moço! Mas eu via ele com certa simpatia, afinal somos todos criaturas que Deus colocou na terra para viver em harmonia...
- Dona Clotilde, eu realmente tenho outras coisas para fazer...
- Então...naquele dia, o Adamastor saiu apressado, e voltou logo em seguida, sem dizer aonde ia, levando uma caixa de papelão embaixo do braço – todo mundo notou, mas como ele não costuma ser simpático com ninguém, ignoramos...enfim, continuei meu serviço normalmente, limpei o saguão, varri os corredores, passei a flanela nos espelhos dos elevadores, tudo como de costume, até que tive que subir ao terraço para guardar o material na salinha da limpeza, para trocar de roupa e ir para a novena de quinta-feira. Quando cheguei no terraço, fiquei estarrecida com o que estava acontecendo ali: Adamastor se masturbava olhando as janelas dos vizinhos! Fiquei paralisada com aquela cena horrível! Seu Gregório, o senhor sabe que nosso Senhor Jesus Cristo condena a masturbação, não é?? O pastor nos disse de uma passagem na bíblia onde o Senhor Jesus ficou quarenta dias no deserto, e comentou sobre esse assunto...mas enfim! Fiquei paralisada com aquela cena horrível! O Adamastor veio na minha direção, tentando disfarçar o volume em suas calças, e falando sobre cometas, lunetas, e um monte de baboseiras sem sentido, só para me distrair; quando chegou perto de mim, me segurou pelos cabelos e me jogou de joelhos no chão! Não tive tempo nem de reagir, Seu Gregório: em questão de segundos ele já havia ejaculado em minha face, e enquanto eu tentava limpar meu rosto lambuzado, ele levantou minha saia, começando tudo aquilo que o senhor presenciou! Ele tinha um bafo de cachaça que só de lembrar me dá ânsias – aquele homem horrível em cima de mim! Não consegui reagir; ele era mais forte que eu, e conseguiu me dominar! Quando dei por mim, o escândalo já estava armado, as pessoas olhavam nossas vergonhas expostas como se fossemos animais, e o senhor nem ouviu nossas explicações! Seu Gregório, eu fui vítima de abuso sexual dentro desse prédio – o senhor sabe que eu poderia até entrar com uma trabalhista...
- Mas Dona Clotilde, quando eu cheguei ao terraço a senhora estava por cima do Adamastor...
- Seu Gregório, o senhor está se prendendo a detalhes pequenos! Como eu ia lhe dizendo, a culpa foi toda do Adamastor; eu preciso desse emprego, pelo amor de Deus...