sexta-feira, 2 de julho de 2010

[Conto] O candidato

Quando o senador desembarcou no aeroporto, uma rajada intermitente de flashes parecia tentar congelá-lo por alguns curtos instantes, na busca vã por um gesto tácito de constrangimento. Não respondeu a nenhuma das perguntas enquanto caminhava circunspeto, entre seguranças suficientes para afastar a multidão. Nem uma palavra, nem um gesto. Apenas entrou no carro oficial e partiu em direção à zona nobre da cidade.

Enquanto isso, no coração do cerrado, bem longe dos flashes, o representante de uma empreiteira esperava o assessor do homem da toga preta, com um poupudo regalo debaixo do braço. O agraciado doutor-bacharel, do topo de sua autoridade, aprendeu cedo que o preço de um representante no sistema democrático inclui acórdãos, votos e pareceres em seu planejamento orçamentário. Toda decisão é possível, o trabalho se resume em organizar os argumentos.

domingo, 19 de julho de 2009

[Conto] Tobias perdeu a alma!

Tobias era apenas mais um dígito, desses que carrega no peito o mais puro humor negro e na cara um desesperado sorriso amarelo. Não era timidez, era falta de inspiração - seu sopro de personalidade havia sumido um dia, não se sabe qual, nem quando, nem porque. Acordava todo dia no mesmo horário, comprava pão, ia pro trabalho, separava o lixo, ia à missa - tudo sem inspiração, sem transpiração, sem motivo. Desde o dia que perdeu a alma (não se sabe quando!), não elevava a voz, não reclamava, não se surpreendia. Como bom cordeiro, seguia do estábulo para o campo onde pastava, e com o mesmo rigor voltava do trabalho para casa. Tobias não fazia sexo, porque tinha sido emasculado pelo cotidiano. Trabalhava no trabalho e em casa, mas não sabia até quando. Um violão sem cordas, um anzol sem isca, um brinquedo sem criança. Tobias não vendeu a alma, não trocou por outra, nem se desfez dela - simplesmente a perdeu um dia, sem se dar conta, como quem perde um isqueiro.

terça-feira, 30 de junho de 2009

[Conto curto] Instante estanque

Olhou o relógio e se apressou inutilmente. Toda incerteza tem a habilidade de se condensar em um instante sem correspondência real, numa composição dadaísta de vazio e silêncio. Uma gota de suor lhe nasceu na testa. Por mais que tivesse a dizer, seu palato era um trapézio de palavras; as ideias jogavam malabares em seu estômago; as pupilas dilatavam.

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- É grave, Doutor?

- Suspeita de AVC, senhora!


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terça-feira, 16 de dezembro de 2008

[Conto] Seduções!



“Pleased to meet you, hope you guess my name,

But what’s puzzling you is the nature of my game”

The Rolling Stones – Simpathy of the Devil (1968)



Muito prazer! Eu bem sei que não é uma visita usual, a minha; prefiro observar à distância, e pela fama que recebo talvez seja o último indivíduo que você gostaria de ver pela frente, mas lhe asseguro, minha bela morena: não estou aqui para impor nada – só peço que me receba com o mínimo de cortesia, e permita-me apresentar-me – caso o que tenho a lhe dizer não cause nenhuma simpatia, irei embora com a mesma imprevisibilidade e distinção com que surgi, como um perfeito cavalheiro. Sou um homem refinado, e não estou aqui para desperdiçar nosso tempo com retóricas sediciosas, por isso não perca seu tempo confrontando-me: depois que eu me for, você terá todo o tempo do mundo para decidir o que fazer. Sem jogos, sem clichês, sem falsos interesses. Pouco me importa o lugar onde você estuda, se já é formada, onde você trabalha, quanto ganha, ou o seu signo no zodíaco – nada disso expressa o ponto aonde quero chegar. Também não estou preocupado com o fato de você gostar de baladas, esportes, ou de novelas, eu moro dentro dos teus momentos, onde você estiver, dentro de cada sorriso dissimulado, de cada olhar hesitante, de cada pensamento abafado no quarto escuro! A existência é um grande processo de interpretação, portanto permita-se interpretar-se a si mesma, e quando tiver realmente certeza de que ainda existe, talvez compreenda o que estou tentando lhe dizer.

Pela curiosidade de seus olhos, insta-me salientar, minha cara: prego a transformação, a audácia; a base do que lhe proponho se sustenta no fato de ser o caos a única saída viável, a partir do momento que o cosmo torna-se demasiadamente inerte e invariável; sou o tempero, o flerte, e a ousadia; sou o olhar através das cortinas do apartamento, famintos pelo turbilhão de acontecimentos que se engalfinham sob o parapeito; sou a curiosidade, o desapego e as alucinações; sou a estrada, o caminho, e o regente do destino, pois meu hálito faz-lhe enxergar o futuro e não se preocupar com ele; o futuro só existe a partir do momento que se torna presente, e você, no fundo, sabe muito bem disso; perto do que lhe proponho, os sofrimentos do mundo se dissipam no ar, como que incapazes de atingi-la; sou aquele que é temido por todos os chefes de Estado, não só por instigar a revolução, como também por buscá-los, absorto, à beira de cada guilhotina, forca ou parede de fuzilamento. Eu sou a bala que sai, o pó que entra, o filho que não volta; sou as faces da mesma moeda: o poder do dinheiro e a vida dos seus filhos eternamente sob escolta armada, entre a casa e a escola.

Mas não se engane, minha bela e sensual morena, cumpro meu destino aparentemente injurioso, tal qual Judas cumpriu sua missão ao entregar Jesus, para que se transformasse em Cristo. Sou aquele que foi encarregado de te convencer a experimentar a Criação Divina por seus próprios olhos, boca, narinas e orelha; com todos os nervos, pelos e sentidos. Os porcos que tentam controlar o comportamento humano através do medo de experimentar são os mesmos que temem meus desígnios sob os escudos da mais falsa fé em um Deus em que ninguém mais acredita, pois as regras do mundo mudam a cada segundo. Fui encarregado como o portador da luz, para conduzi-la entre os indivíduos, e é ela quem exorcizará as sombras que cercam cada templo, cada capela, cada cruz. Não há mistérios, nem jogos de duplo sentido, minha bela – basta que aceite a natureza do meu jogo: as regras já foram previamente definidas por Ele, para que eu livrasse os indivíduos do grande mal que assola a humanidade: o domínio infame e calculista do homem sobre o próprio homem!

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

[Conto] Vazio.

Vazio. Era assim que o espaço-tempo ao redor de Cristina ungiam o apartamento de quarto e sala na esquina mais movimentada da cidade com um sentimento melancólico e obscuro, de origem desconhecida. No rádio, um solo de trompete se contorcia denso entre a sala e a cozinha, agonizando solitário ante um tímido acompanhamento de piano minimalista. Olhou para a conjunção descontínua entre carros e sinais de trânsito efervescendo pelas paredes externas do prédio, embebidos pela chuva e abafados pelas janelas fechadas, enquanto buscava dentro de si um pouco de disposição para preparar o café da tarde. Os guarda-chuvas se encarregavam de um movimento lúdico e inconstante, cobrindo as calçadas com seu luto inanimado. Na cabeceira da cama ainda havia mais três comprimidos de Diazepam, os últimos, guardados como tesouro para enfrentar mais uma tenebrosa noite de domingo, e esperar incógnita a manhã de segunda-feira. Costumava dizer que a culpa de sua solidão era a obesidade e a mecha de cabelo branco que lhe tomava a têmpora, impondo-lhe um ar dracúleo. Cristina era dessas mulheres apaixonadas que nunca estão amando a ninguém, muito mais por conta do pessimismo que lhe é inato do que pela falta de atributos físicos; o negativismo apaga qualquer possibilidade de beleza palpável num corpo pálido, inerte e esquecido. Pediu licença médica da repartição para tratar de uma depressão aguda, e desde então só saia de casa para comprar comida, religiosamente no mesmo horário, todos os dias; mas desta vez, comprou um litro de vodka no lugar do macarrão. Um copo fundo, um cigarro, Bitches Brew passeando por diversas escalas, e o segundo copo fundo fez com que Cristina esquecesse o gás aberto, enquanto procurava algo interessante na televisão num dia chuvoso de domingo – não sem antes vedar a porta com uma toalha de banho molhada.

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

[Conto] Uma Lua?

“Em meio um cristal de ecos
O poeta vai pela rua
Seus olhos verdes de éter
Abrem cavernas na lua.
A lua volta de flanco
Eriçada de luxúria
O poeta, aloucado e branco
Palpa as nádegas da lua. (...)”

Trecho de “O Poeta e a Lua”, de Vinícius de Moraes. in. Antologia Poética.


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Uma Lua?

Por um feliz acaso lingüístico, ou por pura malícia dos ancestrais, Lua é um substantivo simples, do gênero feminino. Um substantivo simples, para nos lembrar que a vida não é tão complicada como imaginamos, ou tão dura como tentamos torná-la. Uma consoante, duas vogais em ditongo decrescente, simplesmente Lua. Suave e mística, com seu olhar de morena velando a noite, inspirando poetas e vagabundos, dissolvendo risadas soltas no ar por nossas madrugadas tropicais, enquanto o sereno cai tranqüilo e contundente como agulhas em noites frias, ou então refrescante como a brisa marítima, quem sabe?!


Feminina pelos encantos que exerce em suas quatro faces: Nova, Crescente, Minguante, Cheia! Feminina, pois só uma bela mulher poderia exercer tais encantos sobre a humanidade. Feminina, pois só sendo feminina para conseguir tirar a atenção do homem sobre seu incólume mundo egoísta, fazê-lo olhar para o céu, e comentar: “Nossa, como a Lua está linda hoje?!”


Enfim, feminina, pois mesmo depois do último copo, ou falecido o último dos poetas, o último dos insones, o último dos vagabundos, e mesmo depois de desiludido o último dos sonhadores, lá estará ela, triunfante, redonda e branca, reinando soberana sobre a madrugada.

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

[Conto] Apenas mais um verão escaldante.

Mais um dezembro escaldante como outro qualquer; a rádio comunitária gritando um funk estridente, o som metálico das peças do fuzil se encaixando e a gota de suor escorrendo pela minha testa fazem parecer que o tempo parou por alguns instantes, para dar a todos mais alguns segundos de vida. Montei e desmontei a Kalashnikov três vezes, enquanto o exército se prepara para subir – dá pra sentir daqui de cima o cheiro do medo. As pipas já não estão mais no céu, as pessoas já trancaram suas casas. A polícia alegou não ter condições de subir o morro, e o exército brasileiro entrou na jogada como última solução para o caos urbano. Irônico, né?! – mais fácil convencer um moleque de dezoito anos a cumprir o dever, do que um pai de família; mas não é disso que eu quero falar: quando as armas dispararem os primeiros tiros, será apenas o velho instinto de sobrevivência primata cuspindo projéteis a setecentos metros por segundo na direção do inimigo; sem sociologia, Estado, ou religião para intervir. Depois de morto deve ser mais fácil olhar para a própria vida e encontrar nossos erros, mas não estou aqui para chorar minhas misérias, nem para compreender o que o destino me aprontou – sobrevivo no tráfico desde os treze anos, sem nenhum ferimento de combate, e rezo todos os dias para continuar vivo, ou morrer rápido, só isso; e talvez por isso mesmo incomode tanto o secretário de segurança pública: atualmente, sou o cara que está a mais tempo no comando de uma boca de fumo em todo o estado do Rio de Janeiro – e por isso mesmo chegou a minha vez de pagar o preço da fama, os jornais precisam dar alguma satisfação para o pão e circo nosso de cada dia, e vou fazer o possível para que minha vez não seja hoje. Simplesmente fingem não saber que matando um cara como eu, surgirão outros vinte querendo ocupar a vaga, mas prefiro não dizer o que penso sobre isso tudo – o que importa agora é sobreviver, e não contemporizar com o inimigo. Eles já estão posicionados, faltam alguns segundos incólumes para a primeira armar disparar, e alguns minutos insanos entre o primeiro tiro e o caos. Coloquei os fones de ouvido, a trilha sonora do Pulp Fiction me inspira – seria bom ser bandido como o John Travolta, e no próximo filme interpretar um cara comum, mas aqui é a Babilônia, não Hollywood. As carreiras do pó branco me deixam concentrado em continuar vivo por mais um dia, enquanto Miserlou fica repetindo no MP3 catarticamente a todo volume, e minhas pupilas dilatam. Faço o sinal da cruz, pedindo para que o sangue espalhado pelo chão não seja o meu, beijo o retrato do meu filho; minhas guias me protegem, e seiscentos tiros por minuto abrem as portas entre o céu e o inferno, enquanto o helicóptero da Globo registra tudo à distância segura. É apenas mais um dezembro escaldante, que em algumas horas você verá na TV.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

[Conto] A estranha cigana polivalente.

Algumas histórias só se permitem acontecer nas entranhas mais íntimas da cidade, à penumbra e em segredo, protegida dos olhos desatentos e apedrejadores do mundo. Cristina era uma mulher possessiva; seu ciúme sobrevivia ao fim das relações. Naquela época a vida e o tempo pareciam correr homogêneos, e a idade ainda não anunciava a urgência de viver cada dia como se fosse desesperadamente o último. A estranha cigana tinha somente alguns dentes podres figurando com o de ouro, solitário no canto direito da boca, mas era polivalente; jogava tarô, búzios, era astróloga, vidente, lia mãos, runas, cabala judaica e borra de café – Cristina a elegeu por parecer a mais completa do anúncio de jornal; pagou adiantado, e fez tudo conforme lhe foi instruído naquela saleta mal iluminada fedendo a velas aromáticas vagabundas. No primeiro alguidar, velas vermelhas, ovos, farofa com dendê, mel, açúcar, maçãs e uma garrafa de champanhe; no segundo, velas pretas com fitas vermelhas de cetim, farofa com sal, pimenta, pipoca, frango assado e uma garrafa de cachaça, tudo deixado numa encruzilhada próxima ao cemitério local durante a madrugada. Ira – dos pecados, o mais pungente; aquele caprichosamente praticado por Deus, esporadicamente, para pôr as coisas em seu devido lugar! O ciúme é corrosivo como o sal fustigando o manto dos gastrópodes, roubando-lhes a água, sugando-lhes a vida, até secarem por completo. Segundo a velha cigana, um dos despachos era para trazer Claudionor de volta; o outro, era para eliminar a amante do mapa, impiedosamente, abrindo-lhe assim todos os caminhos para a felicidade plena. A ira de Cristina estava cega na salmoura do ciúme, e numa dor entorpecida de mulher abandonada – ele será seu novamente, custe o que custar.

sábado, 18 de outubro de 2008

[Conto] Prosa descontínua do substantivo feminino.

A ambulância, a maternidade, a luz. A enfermeira, a palmada, a tesoura. A mãe, a infância, as palavras. A bicicleta, a pipa, a amizade. A adolescência, a primeira vez, a paixão. A filosofia, a música, a ilusão. A carteira de motorista, a faculdade, as festas. As noites, as bebidas, as mulheres. A moto, a praia, a euforia. A viagem, a paisagem, a namorada. A paixão, a fidelidade, a tentação. A mulher, a poesia, a prestação. A pia, a geladeira, a máquina de lavar. A sogra, a empregada, a cunhada. A gravidez, a maternidade, a luz. A filha, a crise financeira, a discussão de relacionamento. A outra, a separação, a pensão alimentícia. A depressão, a escolha, a reconstrução. A noite, a liberdade, a namorada. A mudança, a adaptação, a tranquilidade. A união estável, a segunda filha, a nova fase. A carreira, a estabilidade, a realização. A adolescência, a insônia, a preocupação. A faculdade da filha, a aposentadoria, a velhice. A neta, a teogonia, a televisão. A transcendência, a entrega, a morte.

sábado, 11 de outubro de 2008

[Conto] Interseções!

Depois de três anos, Sandra Mara acordou. Abriu os olhos lentamente, ainda não acostumados à luz do dia, identificou o quarto à sua volta, mas não o reconheceu - era seu quarto, aquele que arrumava todos os dias, assim como o resto da casa, mas tudo lhe era estranho. Olhou as roupas do marido espalhadas sobre a cama, a toalha pendurada na porta do banheiro, e percebeu que, por algum motivo, ali não era mais o seu lugar. Aversão pura e simples de fêmea insatisfeita; sem brigas, sem traições, sem mágoas - apenas o desejo incontido de oferecer seu ventre e sua plenitude a outro homem, que ainda não conhecia - sim, ainda havia tempo! Seu marido jamais compreenderia. Perguntaria se tem outro, se estava magoada com algo, se queria viajar para a praia, se estava tudo bem no emprego - mas nunca seria capaz de assimilar que aquele amor acabou, através de um sentimento singelo e sem culpa de 'não-amor': talvez um amor de amigo; e para ele, em seu modo pragmático de enxergar, nada mais obscuro do que o simples deixar de sentir. Ou tem amor, ou desprezo; ou é paixão, ou ódio; ou tesão, ou aversão. Enquanto para ele o amor era algo eterno e inabalável, para ela havia acabado de se mostrar efêmero e aleatório, naquela manhã ensolarada de um dia qualquer - a intensão de parecer viver um conto de fadas se desfez, e ela percebeu que ninguém é feliz para sempre. Decidiu contar-lhe tudo no jantar de sexta-feira. Ele chorou, declarou seu amor e foi pateticamente estúpido, alternando entre as três reações quase que dentro do mesmo espaço de tempo. Fez várias perguntas, não acreditou em nenhuma das respostas; afirmou que sem ela não poderia viver, que não saberia como viver sozinho. Disse, como quem se rende ao inimigo, que o divórcio é pior que a morte. Mas Sandra Mara era o vazio agoniante e frio de uma noite no deserto.