segunda-feira, 24 de novembro de 2008

[Conto] Uma Lua?

“Em meio um cristal de ecos
O poeta vai pela rua
Seus olhos verdes de éter
Abrem cavernas na lua.
A lua volta de flanco
Eriçada de luxúria
O poeta, aloucado e branco
Palpa as nádegas da lua. (...)”

Trecho de “O Poeta e a Lua”, de Vinícius de Moraes. in. Antologia Poética.


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Uma Lua?

Por um feliz acaso lingüístico, ou por pura malícia dos ancestrais, Lua é um substantivo simples, do gênero feminino. Um substantivo simples, para nos lembrar que a vida não é tão complicada como imaginamos, ou tão dura como tentamos torná-la. Uma consoante, duas vogais em ditongo decrescente, simplesmente Lua. Suave e mística, com seu olhar de morena velando a noite, inspirando poetas e vagabundos, dissolvendo risadas soltas no ar por nossas madrugadas tropicais, enquanto o sereno cai tranqüilo e contundente como agulhas em noites frias, ou então refrescante como a brisa marítima, quem sabe?!


Feminina pelos encantos que exerce em suas quatro faces: Nova, Crescente, Minguante, Cheia! Feminina, pois só uma bela mulher poderia exercer tais encantos sobre a humanidade. Feminina, pois só sendo feminina para conseguir tirar a atenção do homem sobre seu incólume mundo egoísta, fazê-lo olhar para o céu, e comentar: “Nossa, como a Lua está linda hoje?!”


Enfim, feminina, pois mesmo depois do último copo, ou falecido o último dos poetas, o último dos insones, o último dos vagabundos, e mesmo depois de desiludido o último dos sonhadores, lá estará ela, triunfante, redonda e branca, reinando soberana sobre a madrugada.

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

[Conto] Apenas mais um verão escaldante.

Mais um dezembro escaldante como outro qualquer; a rádio comunitária gritando um funk estridente, o som metálico das peças do fuzil se encaixando e a gota de suor escorrendo pela minha testa fazem parecer que o tempo parou por alguns instantes, para dar a todos mais alguns segundos de vida. Montei e desmontei a Kalashnikov três vezes, enquanto o exército se prepara para subir – dá pra sentir daqui de cima o cheiro do medo. As pipas já não estão mais no céu, as pessoas já trancaram suas casas. A polícia alegou não ter condições de subir o morro, e o exército brasileiro entrou na jogada como última solução para o caos urbano. Irônico, né?! – mais fácil convencer um moleque de dezoito anos a cumprir o dever, do que um pai de família; mas não é disso que eu quero falar: quando as armas dispararem os primeiros tiros, será apenas o velho instinto de sobrevivência primata cuspindo projéteis a setecentos metros por segundo na direção do inimigo; sem sociologia, Estado, ou religião para intervir. Depois de morto deve ser mais fácil olhar para a própria vida e encontrar nossos erros, mas não estou aqui para chorar minhas misérias, nem para compreender o que o destino me aprontou – sobrevivo no tráfico desde os treze anos, sem nenhum ferimento de combate, e rezo todos os dias para continuar vivo, ou morrer rápido, só isso; e talvez por isso mesmo incomode tanto o secretário de segurança pública: atualmente, sou o cara que está a mais tempo no comando de uma boca de fumo em todo o estado do Rio de Janeiro – e por isso mesmo chegou a minha vez de pagar o preço da fama, os jornais precisam dar alguma satisfação para o pão e circo nosso de cada dia, e vou fazer o possível para que minha vez não seja hoje. Simplesmente fingem não saber que matando um cara como eu, surgirão outros vinte querendo ocupar a vaga, mas prefiro não dizer o que penso sobre isso tudo – o que importa agora é sobreviver, e não contemporizar com o inimigo. Eles já estão posicionados, faltam alguns segundos incólumes para a primeira armar disparar, e alguns minutos insanos entre o primeiro tiro e o caos. Coloquei os fones de ouvido, a trilha sonora do Pulp Fiction me inspira – seria bom ser bandido como o John Travolta, e no próximo filme interpretar um cara comum, mas aqui é a Babilônia, não Hollywood. As carreiras do pó branco me deixam concentrado em continuar vivo por mais um dia, enquanto Miserlou fica repetindo no MP3 catarticamente a todo volume, e minhas pupilas dilatam. Faço o sinal da cruz, pedindo para que o sangue espalhado pelo chão não seja o meu, beijo o retrato do meu filho; minhas guias me protegem, e seiscentos tiros por minuto abrem as portas entre o céu e o inferno, enquanto o helicóptero da Globo registra tudo à distância segura. É apenas mais um dezembro escaldante, que em algumas horas você verá na TV.