quarta-feira, 22 de outubro de 2008

[Conto] A estranha cigana polivalente.

Algumas histórias só se permitem acontecer nas entranhas mais íntimas da cidade, à penumbra e em segredo, protegida dos olhos desatentos e apedrejadores do mundo. Cristina era uma mulher possessiva; seu ciúme sobrevivia ao fim das relações. Naquela época a vida e o tempo pareciam correr homogêneos, e a idade ainda não anunciava a urgência de viver cada dia como se fosse desesperadamente o último. A estranha cigana tinha somente alguns dentes podres figurando com o de ouro, solitário no canto direito da boca, mas era polivalente; jogava tarô, búzios, era astróloga, vidente, lia mãos, runas, cabala judaica e borra de café – Cristina a elegeu por parecer a mais completa do anúncio de jornal; pagou adiantado, e fez tudo conforme lhe foi instruído naquela saleta mal iluminada fedendo a velas aromáticas vagabundas. No primeiro alguidar, velas vermelhas, ovos, farofa com dendê, mel, açúcar, maçãs e uma garrafa de champanhe; no segundo, velas pretas com fitas vermelhas de cetim, farofa com sal, pimenta, pipoca, frango assado e uma garrafa de cachaça, tudo deixado numa encruzilhada próxima ao cemitério local durante a madrugada. Ira – dos pecados, o mais pungente; aquele caprichosamente praticado por Deus, esporadicamente, para pôr as coisas em seu devido lugar! O ciúme é corrosivo como o sal fustigando o manto dos gastrópodes, roubando-lhes a água, sugando-lhes a vida, até secarem por completo. Segundo a velha cigana, um dos despachos era para trazer Claudionor de volta; o outro, era para eliminar a amante do mapa, impiedosamente, abrindo-lhe assim todos os caminhos para a felicidade plena. A ira de Cristina estava cega na salmoura do ciúme, e numa dor entorpecida de mulher abandonada – ele será seu novamente, custe o que custar.

sábado, 18 de outubro de 2008

[Conto] Prosa descontínua do substantivo feminino.

A ambulância, a maternidade, a luz. A enfermeira, a palmada, a tesoura. A mãe, a infância, as palavras. A bicicleta, a pipa, a amizade. A adolescência, a primeira vez, a paixão. A filosofia, a música, a ilusão. A carteira de motorista, a faculdade, as festas. As noites, as bebidas, as mulheres. A moto, a praia, a euforia. A viagem, a paisagem, a namorada. A paixão, a fidelidade, a tentação. A mulher, a poesia, a prestação. A pia, a geladeira, a máquina de lavar. A sogra, a empregada, a cunhada. A gravidez, a maternidade, a luz. A filha, a crise financeira, a discussão de relacionamento. A outra, a separação, a pensão alimentícia. A depressão, a escolha, a reconstrução. A noite, a liberdade, a namorada. A mudança, a adaptação, a tranquilidade. A união estável, a segunda filha, a nova fase. A carreira, a estabilidade, a realização. A adolescência, a insônia, a preocupação. A faculdade da filha, a aposentadoria, a velhice. A neta, a teogonia, a televisão. A transcendência, a entrega, a morte.

sábado, 11 de outubro de 2008

[Conto] Interseções!

Depois de três anos, Sandra Mara acordou. Abriu os olhos lentamente, ainda não acostumados à luz do dia, identificou o quarto à sua volta, mas não o reconheceu - era seu quarto, aquele que arrumava todos os dias, assim como o resto da casa, mas tudo lhe era estranho. Olhou as roupas do marido espalhadas sobre a cama, a toalha pendurada na porta do banheiro, e percebeu que, por algum motivo, ali não era mais o seu lugar. Aversão pura e simples de fêmea insatisfeita; sem brigas, sem traições, sem mágoas - apenas o desejo incontido de oferecer seu ventre e sua plenitude a outro homem, que ainda não conhecia - sim, ainda havia tempo! Seu marido jamais compreenderia. Perguntaria se tem outro, se estava magoada com algo, se queria viajar para a praia, se estava tudo bem no emprego - mas nunca seria capaz de assimilar que aquele amor acabou, através de um sentimento singelo e sem culpa de 'não-amor': talvez um amor de amigo; e para ele, em seu modo pragmático de enxergar, nada mais obscuro do que o simples deixar de sentir. Ou tem amor, ou desprezo; ou é paixão, ou ódio; ou tesão, ou aversão. Enquanto para ele o amor era algo eterno e inabalável, para ela havia acabado de se mostrar efêmero e aleatório, naquela manhã ensolarada de um dia qualquer - a intensão de parecer viver um conto de fadas se desfez, e ela percebeu que ninguém é feliz para sempre. Decidiu contar-lhe tudo no jantar de sexta-feira. Ele chorou, declarou seu amor e foi pateticamente estúpido, alternando entre as três reações quase que dentro do mesmo espaço de tempo. Fez várias perguntas, não acreditou em nenhuma das respostas; afirmou que sem ela não poderia viver, que não saberia como viver sozinho. Disse, como quem se rende ao inimigo, que o divórcio é pior que a morte. Mas Sandra Mara era o vazio agoniante e frio de uma noite no deserto.

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

[Conto] O beijo da Esfinge!

“...ya no la quiero, és cierto, pero talvez la quiera...”
Pablo Neruda, “Los Veinte poemas de amor, y uma canción desesperada”.


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Com toda certeza não a amo nem estou apaixonado, não tente rotular o que não você conhece! Palavras são signos que nem sempre expressam plenamente um significado, mas se fosse para tentar tecer uma comunicação com um mundo externo ao meu, escolheria ‘desejo’. Não aquele meramente carnal – mais do que comê-la, preciso devorá-la e digeri-la lentamente – mas seus beijos são como um balão, começando do ponto mais alto seu declínio lento e frio. Sob os lençóis, a Esfinge repousa serena, como quem monta guarda em frente a um portal acessível para poucos. Ela não quer promessas, não precisa delas; tem fome de respostas, mas não pode pronunciar as perguntas. Em seu labirinto particular, a última vítima procura desesperadamente pela saída, enquanto seus olhos passeiam suaves pelo mundo, e eu observo à distância, tentando decifrar os enigmas da entrada de seu templo. O sol brilhando sobre seus flancos me ofusca a visão, e eu desvio os olhos para baixo. Busco seus pontos fracos com os passos silenciosos e precisos de um caçador de leoas, mas é inútil: a cada investida mais incisiva, o chão sob meus pés se desfaz em abismos intransponíveis. Ofegante, enxugo o suor em minha testa e observo. A enigmática mulher com corpo de leoa desvia os olhos para mim por uns instantes, e sorri intocável; tenho acesso a seu corpo, mas ela está guardando a entrada de um mundo inacessível para mim. Segundos antes de perder os sentidos, ouço um sussurro quase inaudível: “Decifra-me, ou te devoro!”.

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

[Conto] Fragmentos

Clotilde usou o FGTS que recebeu com a demissão para reforçar sua escassa dentição. O seguro desemprego ainda lhe renderia mais cinco meses sem trabalho e ela resolveu experimentar coisas novas. Caiu de pára-quedas no underground, aprendeu a beber, a fumar, mudou o estilo da vestimenta, e se enturmou com um pessoal meio metido a intelectual, mas que sempre ria de suas piadas sexualmente caricatas com certa incredulidade da situação surreal de ver aquela mulher tão parecida com o Zacarias falando palavrões. Passou a gostar de Rockabilly, deixou as meninas cortarem seu cabelo, e começou a sair todos os dias. Sexo, drogas e rock’n roll, com muito mais rock’n roll do que sexo e drogas, e tudo corria tranqüilo, até que ela voluntariosamente se ofereceu para cozinhar para a turma – ela entrava com os conhecimentos culinários, eles com os ingredientes. Mais de vinte pessoas foram experimentar o tal risoto ao funghi, panelão no fogo, todos comendo com muita satisfação. Clotilde acordou ao meio-dia numa praia que não conhecia, e até deu uma risada maliciosa, ao perceber sinais de uma possível noite de sexo da qual não se lembrava.